quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Campina Grande tem um prêmio Nobel da Paz que atuou na Faixa de Gaza

Foto: Rafael Melo

Sim! O Brasil tem um vencedor do prêmio Nobel da Paz. Aliás, um não, vários... 

Na última terça-feira, 28, foi o Dia do Soldado Desconhecido. E nesta quarta-feira, 29, é o Dia Internacional de Solidariedade com o Povo da Palestina. As datas me fizeram resgatar a história deste vencedor do prêmio Nobel da Paz, que mora em Campina Grande (PB) e atende gentilmente (ou às vezes não muito) pelo apelido de "Suez".  Isso mesmo, o nome do canal que corta o Egito.

É na Capela Cristo Rei, por trás do shopping Luíza Motta, que se encontra facilmente José da Silva Soares. Entre as ações na igreja e na praça, o ex-militar cumpre as horas do dia numa missão infindável. Pinta a parede, ajeita o telhado, varre a praça Tobias di Pace, corta as plantas e assim segue sua tarefa.

A foto acima não traduz o humor desse senhor que, aos 81 anos de idade, faz de tudo uma piada. A vida vira brincadeira em qualquer cena e, no momento de seriedade, se retrai com a sisudez de quem viu muito: da dificuldade na infância em Sapé (PB) à hostilidade da Faixa de Gaza nos anos 1960. 

A sua casa fica pertinho da Capela. É uma das poucas que mantêm grade vazada na frente com quintal aberto e vista da rua e ele se orgulha disto. Ao abrir a porta da sala, o visitante vai dar de cara com uma bandeira da Organização das Nações Unidas e uma bandeira do Brasil em dois mastros no centro da casa. Orna um dos mastros um capacete azul pendurado de lado. É o capacete usado em 1962 em Gaza.

Foto: Rafael Melo

No escritório e no corredor, as fotos e os slides em transparência guardam a memória da maior viagem já feita: à Palestina. "Foi pura aventura. Eu queria ser paraquedista", conta. 

Começou no Exército como sapador mineiro, que era o encarregado de desarmar bombas e minas. "Só podia errar uma vez", conta em tom sempre descontraído. Não imaginava o campo minado que iria enfrentar em solo palestino...

O jovem José da Silva tinha acabado de sair do EB depois de ter servido como soldado, no Rio de Janeiro, em 1961. Dois dias depois, soube do chamamento para a Missão de Paz da ONU na Faixa de Gaza. Inscreveu-se, pois era ali que poderia estar o futuro do jovem paraibano, cujo pai havia morrido na infância e que havia perdido três irmãos pequenos. O cenário de dificuldade já era conhecido, o inesperado do estrangeiro e da guerra não.

"Foi um mês até o Egito de navio. Lá fiquei durante um ano", relembra. 

Foto: Rafael Melo

O deserto egípcio tornava ainda mais árida a missão. Suez foi para o pelotão de infantaria, nas guarnições destinadas a evitar o conflito entre árabes e judeus. Foram seis meses na fronteira e seis meses no comando. Enquanto esteve como sentinela e patrulheiro, um só tiro não saiu do seu rifle.

A Missão de Paz da ONU juntou tropas do Brasil, Noruega, Dinamarca, Suécia, Canadá, Iugoslávia, Índia, Indonésia, Finlândia e Colômbia. No Batalhão de Suez, mais de 6.300 brasileiros serviram.

Suez guarda quadro com brasão das Nações participantes. Foto: Rafael Melo

"Era muita tensão. Ficávamos no solo egípcio do lado da Faixa de Gaza. Israel patrulhava seu próprio território e não aceitava tropas de outros países, principalmente porque tinha indianos muçulmanos na Missão", conta.

Em 1988 o Prêmio Nobel da Paz foi atribuído a todos os que fizeram parte da Missão de Paz da ONU, notadamente o Batalhão de Suez. Entre eles, José da Silva Soares. A medalha, que precisou ser comprada pelos filhos, veio da Noruega e chegou quase 60 anos depois de quando esteve em Gaza. Ele a carrega cuidadosamente no peito sobre o uniforme azul, guardado desde aquele tempo.

Foto: Rafael Melo

A ação foi considerado Serviço Nacional Relevante pelo Governo Federal. Apesar de toda essa história, ele, assim como os demais "boinas azuis", não fizeram jus à pensão vitalícia destinada aos ex-integrantes do Batalhão de Suez. O Projeto de Lei 332/2011 foi aprovado somente em maio de 2023, mas foi vetado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. A maior parte dos boinas azuis já partiu para outra missão em outra dimensão, sem o devido reconhecimento.

Seu Suez segue, contudo, acreditando na força da Missão de Paz como recurso para contornar a guerra.

Para aplacar a dor da falta de reconhecimento, fiz-lhe um poema, a maior honraria que posso conceder ao meu sogro:


Sapé, 


Tuas ruas têm meus passos

Teu compasso me acompanha

Aquele que o mundo ganha

Sempre tem o seu regasso 


Teu pasto foi meu caminho

Lá nos tempos de guri

Fui o rei do abacaxi 

Com a coroa de espinho


O teu cinema exibia 

A história de tanto canto

Que sai do meu recanto 

Buscando uma outra via


Parti e aportei no Rio

Rio, Rio de Janeiro

Junto a um batalhão inteiro

Sai de lá num navio


Egito foi meu destino 

Vi o Canal de Suez

Outro universo se fez

Praquele pobre menino


O deserto que enfrentei

Preencheu o meu vazio

Depois voltei para o Rio

E pra Sapé retornei


Ao retornar à minha terra

Léguas na sola e no joelho

Achei Raimunda Coelho

Minha namorada eterna


Pra viver uma vida terna

Cinco filhos e uma filha 

De uma bonita família 

Sou a figura paterna


Aos oito anos de idade

Perdi o meu pai aos prantos

Hoje aos oitenta anos

Sigo com felicidade


Levo a medalha no peito

De prêmio Nobel da paz

Quero viver muito mais 

Com gratidão e respeito 


O tempo só é bem-vindo

Se podemos reviver

Agora eu posso rever 

Tudo o que tenho vivido


Uma taça, um vinho e um riso

Uma piada de salão 

Uma outra de porão 

Muito trabalho e moído 


Se posso deixar legado

Que seja o do meu humor 

Brinco porque tenho amor

Pelo meu patriarcado


Amo, não falo, mas sinto

Sou soldado, mas sou manso

Um coração de remanso

Nossa casa é o meu recinto

domingo, 17 de setembro de 2023

Nordeste: uma cultura em tela


 

O amigo leitor, ao ler o título deste curto ensaio, provavelmente desenhou imaginariamente um horizonte de expectativas de forma inconsciente sobre o Nordeste em tela.

Involuntariamente, você deve ter sido levado a visualizar um cenário tão rico de expressividade quanto pobre de reducionismo sobre essa região do país enorme demais para caber em um quadro representativo que não ultrapasse as cores da seca, os contornos da ruralidade, os traços do baixo desenvolvimento.

Seja sincero! Que Nordeste apareceu na sua tela imaginária? Tenho a plena certeza que não deva ter sido algo que fuja ao constructo acima descrito ou às praias do imenso litoral, ou ainda sobre as manifestações culturais nossas mais simbólicas.

Veja! A ideia deste trabalho não é desenvolver uma atividade metalinguística, ou seja, usar a língua para discutir sobre outra linguagem: a audiovisual, assim como fez o grande Miguel Arraes em “Lisbela e o Prisioneiro” (2003), quando a protagonista discute o tempo todo no filme sobre o cinema.

Mas precisávamos dessa reflexão inicial para avançar no nosso debate exigindo - de quem lê e de quem escreve – uma desconstrução sobre essa tela de Nordeste.

É que o NE precisou historicamente se encurtar bastante para caber nas telas que o representavam, diminuir-se de tal maneira a reduzir toda a sua grandiosidade a um único ângulo de percepção, uma só lente. O Nordeste, no audiovisual brasileiro, virou este espaço simbólico sobre o qual falamos.

A produção mais recente é a estonteante minissérie Cangaço Novo. As imagens de ação são espetaculares, mas a reprodução das imagens do Nordeste reforça a estética e a historiografia comum do Sertão. 

Não se trata aqui de uma crítica a essa legítima valorização e ratificação de uma imagem substancial da nossa história, do nosso povo, dos nossos costumes. Não! Mas cumpre alargar as lentes para outros nordestes. A Invenção do Nordeste, de Durval Muniz, assim nos ensina.

A grande questão não é a reprodução desta parcela importante da imagem do Nordeste e dos povos nordestinos, mas a forma como é feita, a apropriação da cultura para encaixá-la em narrativas. O cineasta belga de origem francesa radicado no Brasil, Jean-Claude Bernardet, chegou a afirmar que as produções documentais da cultura popular nordestina não são elas próprias produtos de uma cultura popular, uma vez que os grupos reproduzidos nos filmes não participam do processo de construção dos documentários com suas lógicas coletivas de percepção da própria cultura. “Configuram uma forma de desapropriação da cultura popular em favor dos produtores e dos consumidores dos filmes. Mais exatamente: uma desapropriação de imagens e sons tirados da cultura popular”.

Há uma flagrante superficialidade em determinadas abordagens do audiovisual sobre a região que deixam clarividente, tal qual uma exibição digital, essa rotulação, de modo que a lente parece saber o que já vai captar antes mesmo de gravar.

Cremilda Medina denuncia o déficit de abordagem nas narrativas da contemporaneidade e, como exemplo, reclama do não aprofundamento do telejornalismo na cultura chinesa quando da cobertura das Olimpíadas em 2008: “espalham-se informações e assinaturas em que o leitor não encontra a visão abrangente”. Assim poderíamos entender também a angulação do audiovisual brasileiro sobre o Nordeste, esse lugar de seca, religiosidade, mesa farta e a contradição com a fome, coronelismo, gente espalhafatosa, praia, sol, incivilidade... Mas quais circunstâncias estão no arcabouço de tudo isto?

Outro dia desses ouvi de um amigo mineiro que mora atualmente na Paraíba que ele não entendia muito do que assistia ao ver “O Auto da Compadecida” e que, só após passar a morar no Nordeste, reassistiu e sua experiência foi completamente diferente. Em que sentido? Primeiro o de compreender muitos dos comportamentos e de interligá-los com o nosso cotidiano sem parecer uma anomalia. Segundo por entender que aquele era um retrato, mas não um todo. O Auto da Compadecida 2 está para ser lançado e as gravações precisaram ser feitas em estúdio, pois a Taperoá nos anos 1960 já não mais existe. Compreende agora?

“Na teia de significados de um diagnóstico abrangente, não é possível abraçar todos os ângulos, mas, por outro lado, ficar insistindo em um único – em geral a visão economicista dos acontecimentos – leva à redução e não à complexidade” (MEDINA, 2008, p. 82).

Há, no entanto, um movimento endógeno no sentido de abordar com maior profundidade esses nordestes, retirá-los dessa sublimação que promove “uma prisão de sentidos”, parafraseando Antônio Olinto (1954).

Cineastas como Linduarte Noronha, conhecido como o pai do Cinema Novo, e Vladimir Carvalho já fizeram uma enorme abordagem aprofundada desse nordeste sertanejo, com muita propriedade e essência. O que se reclama aqui é a bestialização que se fez em seguida no audiovisual com o nosso cenário.

Mas como profetizava Belchior, “o novo sempre vem”, e alguns novos produtores podem ser colocados nessa prateleira de cineastas nordestinos que reposicionaram a “objetiva” (como geralmente é chamada a lente) para o que poderíamos chamar de “subjetiva”. Tomando por empréstimo as palavras de Fabiana Moraes, na objetividade “[...] está a imensa produção de representações pouco integrais sobre pessoas, grupos e lugares. Nessas lentes opacas e enquadramentos repletos de reduções [...]” (2019, p. 2014).

Esse jogo do objetivo ao subjetivo não é apenas semântico, é muito mais pragmático, trata-se de um redimensionamento sobre pensar o Nordeste na tela, ou nas telas. Da busca por espaço nas telonas do cinema à introdução nas telas da televisão brasileira e à presença nas telinhas das redes, o Nordeste vem se reconfigurando no audiovisual.

A literatura, em um primeiro momento, tratou de dar as bases sobre este campo fértil de exploração visual. Do regionalismo de “A Bagaceira”, do paraibano José Américo de Almeida, ao Torto Arado, de Itamar Vieira, muita coisa mudou por estas terras. As Vidas Secas, de Graciliano Ramos, tornaram-se menos retirantes e passaram a fincar os pés neste torrão.

Voltando a Bernardet, ele é um dos que atacam enfaticamente esse estereótipo no cinema brasileiro do que ele vai chamar de “a estética da miséria”. Para o crítico, a banalização da abordagem naturaliza a miséria e despolitiza esse quadro. O pesquisador exige um posicionamento diferente do audiovisual.

É isso o que têm feito produções como o curta-metragem “O Pato” (2021), de Antônio Galdino, que retrata a violência doméstica em um filme gravado no interior da Paraíba. Não é a estética que é explorada, mas são as causas, os efeitos e as saídas.

É assim que ocorre também no mais recente sucesso do cinema nordestino, Bacurau (2019). A narrativa de não-lugar, de cidade fantasmagórica, de espaço em ruína é questionada, colocada em xeque, confrontada até com atores americanos e, por fim, a cidade se estabelece no mapa, com suas tradições e suas novidades. Bacurau sacudiu as audiências e ganhou o prêmio do júri no Festival de Cannes, feito somente alcançado no Brasil por O Pagador de Promessas (1962), também nordestino.

A riqueza visual permanece extremamente proeminente no Nordeste, mas há outros cenários a serem também explorados. Ou o amigo leitor nunca se indagou sobre porque um produto da teledramaturgia, por exemplo, nunca foi gravado em um centro urbano nordestino, destacando a vida metropolitana? Há tão somente a possibilidade de, se acaso algo for gravado para as bandas de cá, precisar ser necessariamente no semiárido? Recife é um dos centros urbanos mais significativos do país, reúne a herança do Brasil-Colônia com uma arquitetura eclética, povoa as ruas com desenvolvimento desenfreado, mistura o mar com o mangue. Agora eu peço que nos esforcemos para rememorar grandes produções audiovisuais calcadas nesta riqueza visual do Recife (não vale mencionar o carnaval e o Galo da Madrugada).

O movimento Manguebeat, liderado por Chico Science, buscava exatamente, além da denúncia social, constituir a valorização de uma identidade própria recifense, de quem vive “da lama ao caos”. Outro morador do Recife, o paraibano Ariano Suassuna – autor do Auto da Compadecida que citamos –, foi também um fundador de movimento a fim de consolidar a cultura local e elevá-la à dimensão de cultura erudita, clássica, a partir de bases populares. O movimento armorial também se estabeleceu com sua força e sua verve, tanto que se transpôs da literatura, do teatro, da música, para as telas. Prova dessa investida de sucesso é que o filme e o seriado transformaram a cidade de Cabaceiras na roliúde nordestina. E ela detém uma coisa preciosa para o cinema, que é a estabilidade climática, com a menor taxa de ocorrência de chuvas no país e uma superexposição de luz. É realmente um dos melhores lugares para gravar na América Latina, tal qual o céu iluminado de estrelas do Seridó paraibano, este ainda pouco explorado – talvez só mais visibilizado em Boi Neon (2015).

No transcorrer dos anos, tal como o Rio São Francisco que corta o Nordeste e agora banha quase todos os estados, esse rio perene da cultura nordestina foi irrigando outros espaços (num sentido metafórico e também literal). Fazendo um rápido parêntese com a história do rio, observe que a água é um fator simbólico bastante explorado na dimensão visual do Nordeste. Do Velho Chico ao Rio Pajeú, toda uma cultura simbólica se estabelece em torno das águas. No Vale do Pajeú, por exemplo, há uma atmosfera de literatura popular em que os poetas dizem matar a sede. É o espaço do batismo e também da irrigação do imaginário desses poetas da chamada poesia matuta, que é também um outro aspecto reproduzido nas telas. No século passado, os cantadores, emboladores, violeiros, repentistas, cordelistas se viram explorados pelas lentes na sua caracterização peculiar, e ainda hoje permanecem. O pai do chamado “novo cordel”, Manoel Monteiro, fez um apelo para que os escritores nordestinos não precisassem usar chapéu de couro, gibão e outros adereços, típicos de vaqueiro que entra na jurema para pegar boi. Não eram necessários ao ato de escrever, então que se deixasse para os vaqueiros.

Ora, continuemos a discutir sobre essa abordagem do Nordeste no vídeo. Os personagens são cheios de expressividade e isso transborda na tela. Em “A pessoa é para o que nasce”, as irmãs cantoras de Campina Grande, conhecidas como As Ceguinhas, não puderam se enxergar, mas se mostraram para o mundo, de forma tão translúcida quanto a cena em que aparecem nuas na praia de Tambaba (PB). Aqui o documentário diz mais sobre as personagens, do que elas mesmas julgam saber. (BERNARDET, 1985).

Amargamos recentemente a morte do grande roteirista dessa obra primorosa, Maurício Lissovskyi e, um pouco antes, a partida da artista Maroca, uma das três irmãs. Eis a mágica do audiovisual: mesmo com as mortes, a história delas está imortalizada na tela, pois se “A pessoa é para o que nasce”, ela não morre. Contudo, é necessário observar, como aponta Bernardet, que “Um registro nunca pode coincidir com a coisa registrada. Todo registro pressupõe um certo arbitrário cultural”. Mas veja! Neste caso em específico, o diretor Roberto Beliner se envolve e envolve as irmãs na produção de tal forma que a obra é ela mesma um produto coletivo de cultura popular, gestado a partir de “situações sinceras do signo de relação que fluem no documentário, frutos de uma observação participante, apaixonada”, avalia Alexandre Zarate Maciel (2011, p. 426).

Vou me encaminhando para o fim. Como toda obra audiovisual, este texto em tom ensaístico também não se encerra aqui. Tem a finalidade de, feito um trabalho transmídia, permanecer rodando na mente inquieta de quem conseguiu assistir a esta discussão até aqui e se reproduzir através das reflexões, produções e audiências que se farão do, sobre e para o Nordeste.

 

“O olhar vê tons tão sudestes

e o beijo que vós me nordestes

arranha céu da boca paulista”

(Chico César – BERADÊRO, 1995).

 

Referências:

 

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

 

MACIEL, Alexandre Zarate. Conviver, sentir, narrar: personagens documentais e

Jornalísticos. Santa Catarina: Estudos em Jornalismo e Mídia - Vol. 8, No 2, p. 417 – 430, julh/dez. 2011.

 

MORAES, Fabiana. Subjetividade: Ferramenta para um jornalismo mais íntegro e integral. Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 204 – 219, jan./jun. 2019.

 

MEDINA, Cremilda. Déficit de abrangência nas narrativas da contemporaneidade. Matrizes, Ano 2, nº 1, 2008.

 

OLINTO, Antônio. Jornalismo e Literatura. Rio de Janeiro: Selo Edições de Ouro, 1954.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Solastalgia na Chapada dos Veadeiros

Eu escrevo este manifesto enquanto a natureza chora raivosa - não do lado de fora da pousada em que estou, mas de dentro de si - pois o dentro ou o fora não possui uma relação com estruturas de alvenaria para determinar o que é ou não casa, ou o que é ou não a referência. As paredes erguidas pelos homens são apenas um sedimento no solo dessa chapada. Nós, excêntricos que somos, costumamos achar que esses imóveis são a centralidade do que pode existir como referência de abrigo. 

Mas e os sapos que cantam à margem da lagoa? São eles desejosos dessas estruturas? Não! A lagoa é o seu lar. E as paquinhas que giram na lâmpada que me ilumina? Essas foram “seduzidas” pelo brilho potente de uma luz que atrai mais do que os vagalumes ou do que a vegetação rasteira que reflete a luz da lua. Essa simples lâmpada de LED mudou o rumo de milhões dessas paquinhas. Como poderia imaginar Thomas Édison? O Iluminismo traz luz e escuridão. 

O que me faz escrever quase com a mesma força com que a água desaba do céu do Cerrado é um sentimento chamado pelo filósofo Glenn Albrecth de solastalgia, uma sensação poderosa, dolorosa, triste de sentir um remorso abissal pelos danos ambientais que impactaram, impactam e vão impactar o meio ambiente no futuro, uma saudade por algo que ainda não se perdeu, de sofrer pela perda de uma casa que deixará muito em breve de existir. As letras pingam forte na tela feito as gotas que crateram o solo. É uma enxurrada de dor e desalento. O som da água se mistura ao toque desse teclado numa sinfonia assíncrona, improvável. É choro fora e dentro! 


Sinto muito enfurecidamente, e não lamentavelmente pois lamentar não transforma nada, por saber que próximas gerações de quilombolas Kalungas, os verdadeiros habitantes deste lugar em que estou, não verão o que eu, homem branco do Nordeste, vi nas terras que lhe são originalmente pertencentes, mas pertencentes num sentido amplo, de pertencimento e não de propriedade. Sinto, vergonhosamente, que novamente uma geração de humanos brancos segue a vilipendiar o espaço que não lhe cabe. Sem ter sequer conhecido os novos Kalungas, me desculpo por saber que ajudei involuntariamente a lhes negar a chance de viver, de existir como Kalungas, como quilombolas. É um manifesto contra mim e contra muitos! 

Assistir às araras-azuis-grandes ou desfrutar do banho gelado das cachoeiras é um prazer que não durará para sempre. Roubei de muitos essa oportunidade. Sinto novamente o peso da exploração sobre esses povos se repetir, agora com o eufemismo de turismo. 


O nosso guia é um Kalunga. Admilson Francisco viveu por muitos anos nas terras onde ele se reconhece como ser. Relata ter vivido sem ver carro passar por anos na região. “Era uma raridade”. Hoje é uma constante. O inevitável “progresso” chegou, e a que custas? Na Cachoeira Ave Maria são mais de 100 metros de queda d’água. Pergunto se o nome se dá pelo formato que remete ao véu da santa, no que ele me responde que, na verdade, a cachoeira recebia os corpos dos homens negros escravizados que eram usados por donos de terra na região para abrir estradas. “Depois do serviço, que eles usavam os escravos, jogavam eles aí”, narra. A santa havia de protegê-los no céu depois de caírem no inferno.

É difícil seguir. As águas que hoje me banham de prazer, lavaram corpos e sangue. A trilha que corta a vegetação abre crateras dentro de mim. Sinto uma invasão. Sinto por invadir. Os trajetos começaram pequenos e foram se alargando, conta Admilson. “Ser humano é assim, vai explorando, desmatando e daqui a pouco onde passava um passam cem”, diz na sua sabedoria. E é por essa observação dele que julgo dizer que em breve não haverá mais tudo isso, só estradas. Na ditadura empresarial-militar, um certo ditador afirmou que governar é construir estradas. São essas estradas que retiram de comunidades como dos Kalunga a chance de existirem como são. Admilson Francisco até fala inconscientemente que normas ambientais engessam o turismo na região: “Coisa do Ibama”. Mas reconhece que vivia melhor na roça, como ente desse ecossistema. “A vida na roça era melhor. Tive que morar na cidade, trabalhar como pedreiro. Nem se compara”, lamenta. Sem saber, mas sentindo, ele sofre aqui de solastalgia. 

Escrevo nesse 8 de janeiro de 2023, bem próximo ao Distrito Federal, na Chapada dos Veadeiros. Enquanto um dos maiores golpes à democracia acontece em Brasília. Choro junto à natureza pelo futuro dos Kalungas, pelo seu futuro, pelo nosso futuro.

sábado, 29 de outubro de 2022

Meu pai: um condutor da democracia

 


Sempre desejei falar sobre o ofício do meu pai. Não, eu não segui o mesmo caminho, mas me intrigava ver o meu homem com “a barra de seu tempo por sobre seus ombros” sem uma linha sequer de reconhecimento, e a gente sabe que “a vida é trabalho”, como diria Gonzaguinha. 

 

O ponto de partida para a minha decisão sobre finalmente falar sobre o trabalho do meu pai foi a mais recente prova insolente da antidemocracia praticada pelo presidente brasileiro ao solicitar a limitação do transporte para as pessoas que necessitam de apoio para o deslocamento no dia da votação das eleições 2022. É uma sutil forma de banir o mais banal direito de todos associado ao mais democratizante deles, o direito de ir e vir (para votar). 

 

A Lei nº 6.091/1974 prevê a oferta gratuita de transporte a eleitores da zona rural. 

 

Meu pai transporte diariamente crianças e adolescentes num vai e vem em busca da educação. O transporte que leva aos Caminhos da Escola, por entre as zonas rurais do interior da Paraíba, vai ajudando a abrir os grotões do conhecimento.  

 

Nos mesmos assentos em que os estudantes percorrem o trajeto até as escolas para assistir às aulas, sentam-se, a cada dois anos, pessoas que vão aos mesmos colégios, mas para votar. 

 

É um ritual quase tradicional. Naquele dia o ônibus é deles, dos eleitores. O mesmo transporte que não pode levar, senão, os estudantes em todos os outros dias, pertence a todas as pessoas que precisarem daquele meio para se deslocarem até as urnas. É, para muitos talvez, o único meio de acessar um meio de transporte no decorrer de muito tempo. 

 

A mulher de vestido estampado colocou os melhores adereços naquele 2 de outubro. O trajeto entre o sítio Tambor e o distrito de São José da Mata naquela data vai tendo contornos diferentes por entre a janela grande; a paisagem vai sendo vista por um lugar de destaque, há quase uma superioridade no olhar, um prestígio, pois ela está sendo conduzida, apanhada na porta de casa, para depositar a sua opinião num aparelho tão sofisticado quanto seu uso.  

 

Lembrei-me de um poema do poeta José Laurentino chamado “Carona de Candidato”. Mas aqui não é o político que conduz esta mulher, é a política. O Estado a favor do cidadão lhe oferta a carona para que ele possa decidir o rumo do país. Se isto não te comove, caro amigo, é melhor pedir parada e descer desse ônibus. 

 

No crachá que meu pai leva no pescoço está, num papel branco, o brasão da Justiça Eleitoral. Ele brinca que hoje é autoridade, e talvez essa seja a única nota de protagonismo em sua vida, só assemelhada a quando vestia o macacão do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192). Esse meu pai, que ora até brada pensamentos inconscientes de desestatização, já fez muito mais política pública que a maioria dos políticos com vida pública. 

 

Seguimos. O ônibus rompe a BR, asfaltada muitos anos atrás, e entra nas ruas de terra fumegando um bafo quente com poeira fina. As portas abrem e entram uma a uma as famílias. O carro coletivo retorna e desfila pelas ruas calçadas, tendo prioridade no esquema de trânsito para circular até a frente das escolas. Meu pai segue sério como quase não reconheço, é uma espécie de personagem porque o evento enseja. A democracia exige decoro.  

 

E é assim o dia inteiro. Sobe e desce, vai e vem, vota e volta!  

 

Lado A e lado B no mesmo lado, no mesmo carro, no mesmo caminho. Estamos todos dentro desse ônibus. 

 

Meu pai é cauteloso na direção, dá seta, sinaliza o que vai fazer, aguarda as manobras dos outros condutores, segue as regras. Será tão difícil seguir as normas? 

 

Na faixa passa um pedestre, mas “eles venceram e o sinal está fechado pra nós que somos jovens”. Mas é preciso evitar que a democracia seja atropelada.  

 

Liga-se o motor novamente e é hora de nova volta. Lembremo-nos que tudo é passageiro. 

 

E os estudantes que amanhã usarão estes assentos possam daqui a uns anos ter o direito de também escolherem em quem votar. Mas escolherem de verdade e escolherem, inclusive, a forma como irão se deslocar até o local de votação. 

 

 



quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Mulheres usam meditação e autoconhecimento para transformar vidas de detentas

Conhecer a verdade é algo que liberta! É tudo o que faz um projeto no Centro de Ressocilização de Rio Claro (SP). As mulheres presas têm suas vidas transformadas, ressignificadas, a partir do autoconhecimento, da descoberta sobre suas histórias.

A ideia é ressocializar as mulheres para reinseri-las na vida em comunidade, mas com mudanças significativas e, para isso, é preciso ir no mais íntimo de cada uma delas.

“Sentimos a necessidade de as pessoas saberem qual o lugar delas na sociedade, dentro do sistema familiar, de ter conexão com a sua própria história, a sua própria origem. Por não ter essa noção de pertencimento com sua família, no mundo do crime elas têm um lugar, pertencem a algo, um grupo, e aí que muitas vão cometendo seus delitos e vão parando nas penitenciárias”, explicou Rita Duenhas, coordenadora do trabalho.

Nossa, que profundo, não é?! E para deixar essas detentas mais confortáveis e propensas a abrirem a chave dos seus corações, o trabalho é todo desenvolvido também por outras mulheres.

Transformação é realizada a partir da família e da meditação

A primeira medida é conhecer a história da família e fazer refletir sobre as causas que as levaram até a prisão. “Isso nos faz entender o porquê das ações dos nossos pais, porque repetimos as nossas histórias... Tem moças que são de famílias que a família inteira está no mundo do crime, então foi a única realidade que elas conheceram”, explica Rita.

E como mudar isso? Essa construção de anos? “Temos que ressiginificar todas essas coisas adoecidas da infância até hoje e mostrar que elas podem fazer diferente e é difícil quando a gente não tem conhecimento da nossa história, da nossa raiz. Elas precisam transformar a família delas para elas se transformarem. Nós trazemos essa força para eles, esse poder!”.

São 3 horas de sessão uma vez por semana durante 10 semanas. As detentas fazem ainda meditação, participam de momentos de musicalidade e terapia em grupo e o principal trabalho é desconstruir traumas e preconceitos consigo mesmas.

“A gente dá força para elas fazerem diferente, para trabalhar o perdão e a culpa, que é o que consome lá dentro. Então trabalhamos muito com o perdão, da compreensão do que levou ela a fazer aquilo e como ela pode fazer diferente a partir dessa nova consciência”, disse Rita.

Poxa! Que olhar humano e desprovido de qualquer preconceito para uma categoria geralmente tão marginalizada, não é? Através dessa sensibilidade, esse trabalho está ajudando a ressocializar verdadeiramente dezenas de mulheres e devolvendo pessoas mais conscientes do seu poder no mundo. “Uma consciência desperta é capaz de despertar muitas consciências”.

Mulheres recebem capacitação e recebem liberdade já com emprego

O projeto desenvolvido por Rita não cuida somente da mente e da alma dessas mulheres, mas as prepara também para as responsabilidades fora da cadeia. Para isso, elas recebem várias capacitações, com cursos profissionalizantes, como panificação, serviços de beleza e até coach. Há uma parceria com empresas e algumas já saem empregadas.

Em 2019 foram 56 mulheres que passaram por essa oportunidade de transformação e em 2020 outras 56 vão iniciar o acompanhamento do projeto. 

Rita lembra que elas são iguais a nós que estamos cá do lado de fora e que o que muda é somente o que está dentro de cada uma, por isso, a transformação age lá no interior dessas mulheres. “É muito amor o que a gente oferece e nada nos difere delas porque muitos de nós também fazemos coisas equivocadas e erradas e a sorte é o nosso controle emocional diante de algumas situações porque quando não temos inteligência emocional vamos fazendo coisas que nos levam a situações que não tem como a gente mudar, por isso a meditação e o trabalho de respiração”.

Veja só a beleza dos depoimentos de algumas dessas novas mulheres:

“Eu olhei, e recordei tudo, e olhei com amor, foi tudo muito bom. Deixou pra mim um olhar diferente da vida e um futuro mais feliz”.

“Me fez muito bem, bem pra minha vida, bem pra minha alma, experiência maravilhosa”.

“Aprendi qual é o meu lugar, que lugar que ocupo na minha família. Hoje compreendo que sou filha e tenho que fazer meu papel de filha. Aprendi a lidar com muitas situações que me aprisionavam internamente. Foi tudo muito lindo, vou levar para sempre”.

“Hoje me sinto muito mais leve. Meus pensamentos mudaram em relação ao perdão, em relação à minha família. E a cada aula eu pude perceber o quanto essa força vem de dentro de mim mesma para enfrentar o mundo lá fora, que é o meu maior desafio”.

“Aprendi que muitas coisas o erro me trouxe de aprendizado e aprendi principalmente que vale a pena viver. Eu aprendi e gostaria de começar tudo de novo, uma outra vez”.

“Me trouxe paz, me trouxe segurança. Consegui matar o sentimento de vingança que tinha dentro de mim”. 

“Aprendi a me amar, a me perdoar”.

“Consegui me conformar, sentir mais leve a dor que tinha no peito”.

“Pude me abrir. É muito bom falar sem ser criticada. Poder falar dos meus pais, da minha mágoa, e ser compreendida”.

“Hoje eu consigo me renovar. Hoje eu posso acreditar que o novo existe e eu mereço ele”.

“Aprendi o que um dia eu fui, o que sou hoje e o que eu serei a partir de agora”.

“Esse momento vai fazer toda a diferença no meu caminho novo”.


segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Bacurau: o filme nordestino que fala de resistência, preconceito e violência atinge meio milhão de espectadores


Bacurau já se tornou um dos grandes nomes do cinema nacional brasileiro e um dos mais importantes da produção contemporânea. Na semana passada, o longa-metragem alcançou a incrível marca de 500 milhões de espectadores. Depois de quase um mês de exibição, o filme deve sair das salas de cinema da maioria das cidades brasileiras, mas segue em cartaz na sociedade.

O longa foi gravado no interior de duas cidades do Rio Grande do Norte, Parelhas e Acari. O pequeno povoado de Barra é que dá vida à comunidade de Bacurau. O enredo mostra um futuro fictício no Brasil de desigualdade, preconceito e apologia à violência, em que políticos tentam extinguir o povoado de Bacurau, utilizando-se de pessoas do Sul do país e de estrangeiros que reforçam a todo instante o preconceito regional contra esses nordestinos. Os moradores da comunidade lutam para que ela não seja extinta do mapa e seus habitantes não sejam dizimados.


A estória tem muitas mortes, na medida em que os gringos se divertem ao exterminar os nordestinos, e é uma forma impactante para falar sobre temas cotidianos como a banalização da violência, a apologia às armas, a ridicularização dos marginalizados, a desvalorização da vida, a bestialização da pobreza. Bacurau tenta mostrar para que futuro iremos retornar se a sociedade continuar cultuando o que valoriza no presente. E, sobretudo, Bacurau trata sobre resistência.



Por ser um faroeste (western) bem elaborado, tecnicamente a película prende bastante o público e aproveita este ponto favorável para colocar o público em cheque, em desconforto ideológico. Bacurau chamou a atenção do mundo, venceu o prêmio do júri de melhor filme no Festival de Cannes, na França, e de melhor filme, melhor direção e crítica internacional no Festival de Lima, no Peru.

A obra dos diretores pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles resultou na contratação de cerca de 800 pessoas e ainda rendeu dinheiro extra para os moradores do povoado de Barra, que trabalharam nas gravações.

Fotos: Divulgação

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Vovô do Samu: condutor socorrista completa 75 anos, continua salvando vidas, e ganha festa dos colegas



Geralmente as pessoas da chamada terceira idade costumam ter uma experiência rotineira com os médicos. Pode ser de uma simples consulta normal com o geriatra até os casos de idas e vindas a vários especialistas. Para seu João Francisco da Silva, um senhor de 75 anos de idade, a experiência com os médicos é diária, mas é de outra forma, já que ele trabalha como condutor socorrista do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu 192).
Mesmo com idade para se aposentar, o motorista de ambulância e socorrista não quis deixar a atividade. Esta semana ele completou 75 anos de idade e 15 anos de carreira como condutor. Seu João está no serviço desde que ele foi implantado em sua cidade, Campina Grande, na Paraíba. Ele foi o condutor do primeiro plantão do serviço, dirigiu a primeira ambulância e realizou a primeira ocorrência.
“Eu lembro até os detalhes, foi numa sexta-feira e de lá pra cá eu me apaixonei por essa profissão”, relatou. Os colegas de trabalho realizaram uma festa pra comemorar o aniversário do samuzeiro. “Ele é um profissional muito competente que veste a camisa pelo serviço, sendo espelho para os demais colaboradores! Chega sempre no horário e mesmo com a idade avançada, realiza ocorrências com destreza em sua condução. Tem um zelo pelo patrimônio público e realiza com afinco essa função. Exemplo de ser humano”, disse o médico Ismael Kim.

A profissão exige bastante das equipes de socorro. Seu João dirige a Unidade de Suporte Avançado, que é designada para os casos mais graves e que tem equipe médica completa. Ele chega a trabalhar em plantões de até 24 horas. “Não tem preguiça, nem corpo mole pra mim. Pode ser o que for de ocorrência, eu faço questão de ir. Acidente, parto, gente ferida, baleada, passando mal. A minha missão é salvar vidas”, afirma. A dedicação e a competência o fizeram ser elevado ao cargo de supervisor de frota.
Antes de virar condutor socorrista, ele exerceu diversas outras atividades e criou os quatro filhos, que já se formaram, casaram e lhe deram um total de quatro netos. Os filhos são dois engenheiros, uma contadora e uma advogada, que seu João faz questão de dizer que formou com muito suor.
Técnico agrícola por formação, João Francisco não descansa nos dias de folga do Samu, mas passa o dia trabalhando em um sítio. “Quando saio do serviço, vou para minha granjinha, cuidar de bicho e de roça, fazer outra coisa que também amo e nem vejo a hora passar”, relatou.
Mas é mesmo no Samu que está a maior realização do idoso. “Quando chega à noite que eu me deito e sei que vou trabalhar no outro dia no Samu, digo para a minha esposa que sou feliz porque vou fazer o que amo quando acordar”, relatou sorridente.

sábado, 13 de julho de 2019

Estudante surdo se forma com conceito A em universidade pública, desenvolve game e destaca ajuda de outros surdos


Matheus Soares revela como grupo de outros surdos o ajudou.

Jogo desenvolvido foi apresentado e aprovado com conceito A.
Quando uma pessoa nasce com um diagnóstico de surdez severa, isto significa dizer que o paciente tem uma possibilidade muito grande de não desenvolver a audição e, por consequência, a fala. Matheus Soares nasceu há 23 anos com este tipo de deficiência. Os pais não descansaram e investiram no tratamento do filho. Apesar de todo o esforço e trabalho com a ajuda de profissionais preparados, o grau avançou para surdez profunda. Mas isso não impossibilitou Matheus de desenvolver a fala e de escutar por meio da ajuda de um aparelho auditivo.
Mesmo com a dificuldade de comunicação, o primeiro curso superior pretendido pelo jovem foi o de Comunicação Social. Largou a vida tranquila em um apartamento de classe média da família no Rio de Janeiro para morar em Campina Grande, na Paraíba, e estudar na Universidade Estadual da Paraíba.
Depois de um período no curso, decidiu mudar e foi estudar Arte e Mídia na Universidade Federal de Campina Grande. Matheus conta que teve muitas dificuldades de adaptação pela falta de acessibilidade e inclusão, mas conseguiu compensar os obstáculos com muita leitura e a ajuda de alunos e professores. “Eu entendo boa parte do que as pessoas falam por meio da leitura labial. Então, quando o professor bota a mão na frente da boca ou fala de costas, eu simplesmente não capto o que está sendo dito. Foi muito difícil, mas eles conseguiram entender em parte, e eu também corri atrás”, disse Matheus.
O fascínio pela animação e o mundo dos games o levou a desenvolver um produto inusitado no curso: um jogo digital. “O Ataque das Galinhas Mutantes” é um game bem humorado em que o fazendeiro tem que se livrar da fúria das galinhas. O jovem contou com a ajuda de amigos e do próprio pai para desenvolver o produto. O trabalho foi aprovado com conceito “A” pela banca da UFCG.
Mas o caminho até essas conquistas não foi tão fácil. Matheus conta que a deficiência criou muita dificuldade na interação. “A surdez, mesmo que não completa, causa muitos problemas de comunicação, o que desenvolve a dificuldade de interação social. E isso é muito sério! Durante muito tempo, me deparei com uma dificuldade de interação, o que prejudica em todas as áreas”, narra.
Contato com grupo de surdos oralizados ajudou Matheus a superar obstáculos.
Mas foi a partir do contato com um grupo de surdos oralizados que Matheus conseguiu se desenvolver e superar os obstáculos. “Desde 2017 eu entrei para esse grupo criado por uma paraibana de João Pessoa. O ‘Diversidade Surda’ reúne pessoas que têm dificuldade na audição e na fala, mas que não se comunicam pela Língua Brasileira de Sinais. Pensar que surdos só falam através da Libras é uma visão muito limitada”, explicou.
O grupo tem mais de 150 participantes e realiza encontros semestrais em estados diferentes do país. “Esse grupo ajudou a melhorar minha autoestima e a ganhar autonomia e confiança. Hoje eu viajo sozinho, sou independente nesse sentido. O nosso grupo está ganhando visibilidade porque não é para falar apenas tecnicamente da surdez, mas é para promover a amizade entre surdos”, disse.
Hoje Matheus desenvolve conteúdo para os perfis do grupo nas redes sociais para ajudar outras pessoas com a mesma deficiência. O jovem ainda está decidindo quais serão os próximos passos da sua história, mas deve retornar para o Rio de Janeiro e se dedicar à área de tecnologia da informação e ciência de dados. Contudo, já tem a certeza que se encontrou no mundo. “É aquela sensação de pertencimento, de se sentir incluído e respeitado. A verdadeira alegria está em conviver entre seus semelhantes.”