quinta-feira, 4 de abril de 2019

Cem anos de solidão: uma obra para inglês não ver



É no local que o escritor se faz universal. No mais peculiar, particular, singular, há substância para o global, o que se denominaria de glocalidade. O que se inspira no que já é universal nasce sem originalidade, sem identidade. A obra de Gabriel Garcia Marquez é uma das mais significativas neste contexto, o que justifica o fato de ter lhe rendido o prêmio Nobel da Paz. Mas o seu trabalho não se resume apenas a uma construção regional que se notabilizou. Apesar de ser circunscrita à Colômbia, a Macondo descrita por Gabriel poderia estar em muitos outros países, excetuando-se, naturalmente, o que é tão particular que só se conceberia na própria Colômbia.
Depois de se universalizar, Cem anos de solidão vive agora um novo processo intermediado pela produção de uma série para a Netflix, plataforma e formatos que devem alçar a estória a um patamar globalizante ainda maior. Uma das primeiras inquietações que nascem é aquela sobre como irão transpor o livro para a tela. Se essa é uma missão difícil em qualquer trabalho de intermídia, nesse caso se agrava porque como o próprio Garcia Marquez pontuou, o seu livro foi escrito para não ser transcrito para o cinema, era uma tentativa de desvirtualizar a magia pela sétima arte que nascia no século passado. Não somente por isso, mas também por essa razão, o autor se valeu do rico realismo fantástico para compor suas cenas. Na época era difícil reproduzir a cena de Remédios subindo aos céus num enrolar de lençóis.
Outra característica marcante da obra são os tempos diluídos em uma narração que corre na medida do pensamento e não necessariamente no tempo cronológico. Ora o presente é sequenciado pelo passado, que antecede o futuro. Da mesma forma o narrador abandona um personagem para falar de outro sem nenhum marcador claro e expressivo dessa ação. Há momentos em que não sabemos sobre qual Buendía se retrata e nesse ponto reside uma das belezas do livro. Com a imagem, será difícil desvirtualizar.
Desse modo, fico a imaginar como transpor tamanho realismo fantástico. É tanta complexidade que só se concebe na abstração. Mas uma hora os seus filhos sabiam que os recursos permitiriam gravar a saga dos Buendía com um carinho próximo do qual Gabriel a criou. Cem anos de solidão será agora uma história/estória de temporadas, de episódios, mas não se pode deixar de folhear os incansáveis receios de Úrsula. No livro dá pra tocar nos Buendía, sabe? Parece que eles continuam ali vivendo dentro daquelas páginas. A trama é tão forte que se aceitam tantas coisas que só se acredita lendo e não vendo, como São Tomé. É uma abstração mais compreensível na própria abstração do que na concretude da imagem. Definitivamente, não é uma obra pra inglês ver.