É no local que o
escritor se faz universal. No mais peculiar, particular, singular, há
substância para o global, o que se denominaria de glocalidade. O que se inspira
no que já é universal nasce sem originalidade, sem identidade. A obra de
Gabriel Garcia Marquez é uma das mais significativas neste contexto, o que
justifica o fato de ter lhe rendido o prêmio Nobel da Paz. Mas o seu trabalho
não se resume apenas a uma construção regional que se notabilizou. Apesar de
ser circunscrita à Colômbia, a Macondo descrita por Gabriel poderia estar em
muitos outros países, excetuando-se, naturalmente, o que é tão particular que
só se conceberia na própria Colômbia.
Depois de se
universalizar, Cem anos de solidão vive agora um novo processo intermediado
pela produção de uma série para a Netflix, plataforma e formatos que devem
alçar a estória a um patamar globalizante ainda maior. Uma das primeiras
inquietações que nascem é aquela sobre como irão transpor o livro para a tela.
Se essa é uma missão difícil em qualquer trabalho de intermídia, nesse caso se
agrava porque como o próprio Garcia Marquez pontuou, o seu livro foi escrito
para não ser transcrito para o cinema, era uma tentativa de desvirtualizar a
magia pela sétima arte que nascia no século passado. Não somente por isso, mas
também por essa razão, o autor se valeu do rico realismo fantástico para compor
suas cenas. Na época era difícil reproduzir a cena de Remédios subindo aos céus
num enrolar de lençóis.
Outra característica
marcante da obra são os tempos diluídos em uma narração que corre na medida do
pensamento e não necessariamente no tempo cronológico. Ora o presente é sequenciado
pelo passado, que antecede o futuro. Da mesma forma o narrador abandona um
personagem para falar de outro sem nenhum marcador claro e expressivo dessa
ação. Há momentos em que não sabemos sobre qual Buendía se retrata e nesse
ponto reside uma das belezas do livro. Com a imagem, será difícil
desvirtualizar.
Desse modo, fico a
imaginar como transpor tamanho
realismo fantástico. É tanta complexidade que só se concebe na abstração. Mas
uma hora os seus filhos sabiam que os recursos permitiriam gravar a saga
dos Buendía com um carinho próximo do qual Gabriel a criou. Cem anos de solidão
será agora uma história/estória de temporadas, de episódios, mas não se pode deixar de
folhear os incansáveis receios de Úrsula. No livro dá pra tocar nos Buendía, sabe?
Parece que eles continuam ali vivendo dentro daquelas páginas. A trama é tão
forte que se aceitam tantas coisas que só se acredita lendo e não vendo, como
São Tomé. É uma abstração mais compreensível na própria abstração do que na concretude
da imagem. Definitivamente, não é uma obra pra inglês ver.