sábado, 29 de outubro de 2022

Meu pai: um condutor da democracia

 


Sempre desejei falar sobre o ofício do meu pai. Não, eu não segui o mesmo caminho, mas me intrigava ver o meu homem com “a barra de seu tempo por sobre seus ombros” sem uma linha sequer de reconhecimento, e a gente sabe que “a vida é trabalho”, como diria Gonzaguinha. 

 

O ponto de partida para a minha decisão sobre finalmente falar sobre o trabalho do meu pai foi a mais recente prova insolente da antidemocracia praticada pelo presidente brasileiro ao solicitar a limitação do transporte para as pessoas que necessitam de apoio para o deslocamento no dia da votação das eleições 2022. É uma sutil forma de banir o mais banal direito de todos associado ao mais democratizante deles, o direito de ir e vir (para votar). 

 

A Lei nº 6.091/1974 prevê a oferta gratuita de transporte a eleitores da zona rural. 

 

Meu pai transporte diariamente crianças e adolescentes num vai e vem em busca da educação. O transporte que leva aos Caminhos da Escola, por entre as zonas rurais do interior da Paraíba, vai ajudando a abrir os grotões do conhecimento.  

 

Nos mesmos assentos em que os estudantes percorrem o trajeto até as escolas para assistir às aulas, sentam-se, a cada dois anos, pessoas que vão aos mesmos colégios, mas para votar. 

 

É um ritual quase tradicional. Naquele dia o ônibus é deles, dos eleitores. O mesmo transporte que não pode levar, senão, os estudantes em todos os outros dias, pertence a todas as pessoas que precisarem daquele meio para se deslocarem até as urnas. É, para muitos talvez, o único meio de acessar um meio de transporte no decorrer de muito tempo. 

 

A mulher de vestido estampado colocou os melhores adereços naquele 2 de outubro. O trajeto entre o sítio Tambor e o distrito de São José da Mata naquela data vai tendo contornos diferentes por entre a janela grande; a paisagem vai sendo vista por um lugar de destaque, há quase uma superioridade no olhar, um prestígio, pois ela está sendo conduzida, apanhada na porta de casa, para depositar a sua opinião num aparelho tão sofisticado quanto seu uso.  

 

Lembrei-me de um poema do poeta José Laurentino chamado “Carona de Candidato”. Mas aqui não é o político que conduz esta mulher, é a política. O Estado a favor do cidadão lhe oferta a carona para que ele possa decidir o rumo do país. Se isto não te comove, caro amigo, é melhor pedir parada e descer desse ônibus. 

 

No crachá que meu pai leva no pescoço está, num papel branco, o brasão da Justiça Eleitoral. Ele brinca que hoje é autoridade, e talvez essa seja a única nota de protagonismo em sua vida, só assemelhada a quando vestia o macacão do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192). Esse meu pai, que ora até brada pensamentos inconscientes de desestatização, já fez muito mais política pública que a maioria dos políticos com vida pública. 

 

Seguimos. O ônibus rompe a BR, asfaltada muitos anos atrás, e entra nas ruas de terra fumegando um bafo quente com poeira fina. As portas abrem e entram uma a uma as famílias. O carro coletivo retorna e desfila pelas ruas calçadas, tendo prioridade no esquema de trânsito para circular até a frente das escolas. Meu pai segue sério como quase não reconheço, é uma espécie de personagem porque o evento enseja. A democracia exige decoro.  

 

E é assim o dia inteiro. Sobe e desce, vai e vem, vota e volta!  

 

Lado A e lado B no mesmo lado, no mesmo carro, no mesmo caminho. Estamos todos dentro desse ônibus. 

 

Meu pai é cauteloso na direção, dá seta, sinaliza o que vai fazer, aguarda as manobras dos outros condutores, segue as regras. Será tão difícil seguir as normas? 

 

Na faixa passa um pedestre, mas “eles venceram e o sinal está fechado pra nós que somos jovens”. Mas é preciso evitar que a democracia seja atropelada.  

 

Liga-se o motor novamente e é hora de nova volta. Lembremo-nos que tudo é passageiro. 

 

E os estudantes que amanhã usarão estes assentos possam daqui a uns anos ter o direito de também escolherem em quem votar. Mas escolherem de verdade e escolherem, inclusive, a forma como irão se deslocar até o local de votação.