quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Campina Grande tem um prêmio Nobel da Paz que atuou na Faixa de Gaza

Foto: Rafael Melo

Sim! O Brasil tem um vencedor do prêmio Nobel da Paz. Aliás, um não, vários... 

Na última terça-feira, 28, foi o Dia do Soldado Desconhecido. E nesta quarta-feira, 29, é o Dia Internacional de Solidariedade com o Povo da Palestina. As datas me fizeram resgatar a história deste vencedor do prêmio Nobel da Paz, que mora em Campina Grande (PB) e atende gentilmente (ou às vezes não muito) pelo apelido de "Suez".  Isso mesmo, o nome do canal que corta o Egito.

É na Capela Cristo Rei, por trás do shopping Luíza Motta, que se encontra facilmente José da Silva Soares. Entre as ações na igreja e na praça, o ex-militar cumpre as horas do dia numa missão infindável. Pinta a parede, ajeita o telhado, varre a praça Tobias di Pace, corta as plantas e assim segue sua tarefa.

A foto acima não traduz o humor desse senhor que, aos 81 anos de idade, faz de tudo uma piada. A vida vira brincadeira em qualquer cena e, no momento de seriedade, se retrai com a sisudez de quem viu muito: da dificuldade na infância em Sapé (PB) à hostilidade da Faixa de Gaza nos anos 1960. 

A sua casa fica pertinho da Capela. É uma das poucas que mantêm grade vazada na frente com quintal aberto e vista da rua e ele se orgulha disto. Ao abrir a porta da sala, o visitante vai dar de cara com uma bandeira da Organização das Nações Unidas e uma bandeira do Brasil em dois mastros no centro da casa. Orna um dos mastros um capacete azul pendurado de lado. É o capacete usado em 1962 em Gaza.

Foto: Rafael Melo

No escritório e no corredor, as fotos e os slides em transparência guardam a memória da maior viagem já feita: à Palestina. "Foi pura aventura. Eu queria ser paraquedista", conta. 

Começou no Exército como sapador mineiro, que era o encarregado de desarmar bombas e minas. "Só podia errar uma vez", conta em tom sempre descontraído. Não imaginava o campo minado que iria enfrentar em solo palestino...

O jovem José da Silva tinha acabado de sair do EB depois de ter servido como soldado, no Rio de Janeiro, em 1961. Dois dias depois, soube do chamamento para a Missão de Paz da ONU na Faixa de Gaza. Inscreveu-se, pois era ali que poderia estar o futuro do jovem paraibano, cujo pai havia morrido na infância e que havia perdido três irmãos pequenos. O cenário de dificuldade já era conhecido, o inesperado do estrangeiro e da guerra não.

"Foi um mês até o Egito de navio. Lá fiquei durante um ano", relembra. 

Foto: Rafael Melo

O deserto egípcio tornava ainda mais árida a missão. Suez foi para o pelotão de infantaria, nas guarnições destinadas a evitar o conflito entre árabes e judeus. Foram seis meses na fronteira e seis meses no comando. Enquanto esteve como sentinela e patrulheiro, um só tiro não saiu do seu rifle.

A Missão de Paz da ONU juntou tropas do Brasil, Noruega, Dinamarca, Suécia, Canadá, Iugoslávia, Índia, Indonésia, Finlândia e Colômbia. No Batalhão de Suez, mais de 6.300 brasileiros serviram.

Suez guarda quadro com brasão das Nações participantes. Foto: Rafael Melo

"Era muita tensão. Ficávamos no solo egípcio do lado da Faixa de Gaza. Israel patrulhava seu próprio território e não aceitava tropas de outros países, principalmente porque tinha indianos muçulmanos na Missão", conta.

Em 1988 o Prêmio Nobel da Paz foi atribuído a todos os que fizeram parte da Missão de Paz da ONU, notadamente o Batalhão de Suez. Entre eles, José da Silva Soares. A medalha, que precisou ser comprada pelos filhos, veio da Noruega e chegou quase 60 anos depois de quando esteve em Gaza. Ele a carrega cuidadosamente no peito sobre o uniforme azul, guardado desde aquele tempo.

Foto: Rafael Melo

A ação foi considerado Serviço Nacional Relevante pelo Governo Federal. Apesar de toda essa história, ele, assim como os demais "boinas azuis", não fizeram jus à pensão vitalícia destinada aos ex-integrantes do Batalhão de Suez. O Projeto de Lei 332/2011 foi aprovado somente em maio de 2023, mas foi vetado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. A maior parte dos boinas azuis já partiu para outra missão em outra dimensão, sem o devido reconhecimento.

Seu Suez segue, contudo, acreditando na força da Missão de Paz como recurso para contornar a guerra.

Para aplacar a dor da falta de reconhecimento, fiz-lhe um poema, a maior honraria que posso conceder ao meu sogro:


Sapé, 


Tuas ruas têm meus passos

Teu compasso me acompanha

Aquele que o mundo ganha

Sempre tem o seu regasso 


Teu pasto foi meu caminho

Lá nos tempos de guri

Fui o rei do abacaxi 

Com a coroa de espinho


O teu cinema exibia 

A história de tanto canto

Que sai do meu recanto 

Buscando uma outra via


Parti e aportei no Rio

Rio, Rio de Janeiro

Junto a um batalhão inteiro

Sai de lá num navio


Egito foi meu destino 

Vi o Canal de Suez

Outro universo se fez

Praquele pobre menino


O deserto que enfrentei

Preencheu o meu vazio

Depois voltei para o Rio

E pra Sapé retornei


Ao retornar à minha terra

Léguas na sola e no joelho

Achei Raimunda Coelho

Minha namorada eterna


Pra viver uma vida terna

Cinco filhos e uma filha 

De uma bonita família 

Sou a figura paterna


Aos oito anos de idade

Perdi o meu pai aos prantos

Hoje aos oitenta anos

Sigo com felicidade


Levo a medalha no peito

De prêmio Nobel da paz

Quero viver muito mais 

Com gratidão e respeito 


O tempo só é bem-vindo

Se podemos reviver

Agora eu posso rever 

Tudo o que tenho vivido


Uma taça, um vinho e um riso

Uma piada de salão 

Uma outra de porão 

Muito trabalho e moído 


Se posso deixar legado

Que seja o do meu humor 

Brinco porque tenho amor

Pelo meu patriarcado


Amo, não falo, mas sinto

Sou soldado, mas sou manso

Um coração de remanso

Nossa casa é o meu recinto

domingo, 17 de setembro de 2023

Nordeste: uma cultura em tela


 

O amigo leitor, ao ler o título deste curto ensaio, provavelmente desenhou imaginariamente um horizonte de expectativas de forma inconsciente sobre o Nordeste em tela.

Involuntariamente, você deve ter sido levado a visualizar um cenário tão rico de expressividade quanto pobre de reducionismo sobre essa região do país enorme demais para caber em um quadro representativo que não ultrapasse as cores da seca, os contornos da ruralidade, os traços do baixo desenvolvimento.

Seja sincero! Que Nordeste apareceu na sua tela imaginária? Tenho a plena certeza que não deva ter sido algo que fuja ao constructo acima descrito ou às praias do imenso litoral, ou ainda sobre as manifestações culturais nossas mais simbólicas.

Veja! A ideia deste trabalho não é desenvolver uma atividade metalinguística, ou seja, usar a língua para discutir sobre outra linguagem: a audiovisual, assim como fez o grande Miguel Arraes em “Lisbela e o Prisioneiro” (2003), quando a protagonista discute o tempo todo no filme sobre o cinema.

Mas precisávamos dessa reflexão inicial para avançar no nosso debate exigindo - de quem lê e de quem escreve – uma desconstrução sobre essa tela de Nordeste.

É que o NE precisou historicamente se encurtar bastante para caber nas telas que o representavam, diminuir-se de tal maneira a reduzir toda a sua grandiosidade a um único ângulo de percepção, uma só lente. O Nordeste, no audiovisual brasileiro, virou este espaço simbólico sobre o qual falamos.

A produção mais recente é a estonteante minissérie Cangaço Novo. As imagens de ação são espetaculares, mas a reprodução das imagens do Nordeste reforça a estética e a historiografia comum do Sertão. 

Não se trata aqui de uma crítica a essa legítima valorização e ratificação de uma imagem substancial da nossa história, do nosso povo, dos nossos costumes. Não! Mas cumpre alargar as lentes para outros nordestes. A Invenção do Nordeste, de Durval Muniz, assim nos ensina.

A grande questão não é a reprodução desta parcela importante da imagem do Nordeste e dos povos nordestinos, mas a forma como é feita, a apropriação da cultura para encaixá-la em narrativas. O cineasta belga de origem francesa radicado no Brasil, Jean-Claude Bernardet, chegou a afirmar que as produções documentais da cultura popular nordestina não são elas próprias produtos de uma cultura popular, uma vez que os grupos reproduzidos nos filmes não participam do processo de construção dos documentários com suas lógicas coletivas de percepção da própria cultura. “Configuram uma forma de desapropriação da cultura popular em favor dos produtores e dos consumidores dos filmes. Mais exatamente: uma desapropriação de imagens e sons tirados da cultura popular”.

Há uma flagrante superficialidade em determinadas abordagens do audiovisual sobre a região que deixam clarividente, tal qual uma exibição digital, essa rotulação, de modo que a lente parece saber o que já vai captar antes mesmo de gravar.

Cremilda Medina denuncia o déficit de abordagem nas narrativas da contemporaneidade e, como exemplo, reclama do não aprofundamento do telejornalismo na cultura chinesa quando da cobertura das Olimpíadas em 2008: “espalham-se informações e assinaturas em que o leitor não encontra a visão abrangente”. Assim poderíamos entender também a angulação do audiovisual brasileiro sobre o Nordeste, esse lugar de seca, religiosidade, mesa farta e a contradição com a fome, coronelismo, gente espalhafatosa, praia, sol, incivilidade... Mas quais circunstâncias estão no arcabouço de tudo isto?

Outro dia desses ouvi de um amigo mineiro que mora atualmente na Paraíba que ele não entendia muito do que assistia ao ver “O Auto da Compadecida” e que, só após passar a morar no Nordeste, reassistiu e sua experiência foi completamente diferente. Em que sentido? Primeiro o de compreender muitos dos comportamentos e de interligá-los com o nosso cotidiano sem parecer uma anomalia. Segundo por entender que aquele era um retrato, mas não um todo. O Auto da Compadecida 2 está para ser lançado e as gravações precisaram ser feitas em estúdio, pois a Taperoá nos anos 1960 já não mais existe. Compreende agora?

“Na teia de significados de um diagnóstico abrangente, não é possível abraçar todos os ângulos, mas, por outro lado, ficar insistindo em um único – em geral a visão economicista dos acontecimentos – leva à redução e não à complexidade” (MEDINA, 2008, p. 82).

Há, no entanto, um movimento endógeno no sentido de abordar com maior profundidade esses nordestes, retirá-los dessa sublimação que promove “uma prisão de sentidos”, parafraseando Antônio Olinto (1954).

Cineastas como Linduarte Noronha, conhecido como o pai do Cinema Novo, e Vladimir Carvalho já fizeram uma enorme abordagem aprofundada desse nordeste sertanejo, com muita propriedade e essência. O que se reclama aqui é a bestialização que se fez em seguida no audiovisual com o nosso cenário.

Mas como profetizava Belchior, “o novo sempre vem”, e alguns novos produtores podem ser colocados nessa prateleira de cineastas nordestinos que reposicionaram a “objetiva” (como geralmente é chamada a lente) para o que poderíamos chamar de “subjetiva”. Tomando por empréstimo as palavras de Fabiana Moraes, na objetividade “[...] está a imensa produção de representações pouco integrais sobre pessoas, grupos e lugares. Nessas lentes opacas e enquadramentos repletos de reduções [...]” (2019, p. 2014).

Esse jogo do objetivo ao subjetivo não é apenas semântico, é muito mais pragmático, trata-se de um redimensionamento sobre pensar o Nordeste na tela, ou nas telas. Da busca por espaço nas telonas do cinema à introdução nas telas da televisão brasileira e à presença nas telinhas das redes, o Nordeste vem se reconfigurando no audiovisual.

A literatura, em um primeiro momento, tratou de dar as bases sobre este campo fértil de exploração visual. Do regionalismo de “A Bagaceira”, do paraibano José Américo de Almeida, ao Torto Arado, de Itamar Vieira, muita coisa mudou por estas terras. As Vidas Secas, de Graciliano Ramos, tornaram-se menos retirantes e passaram a fincar os pés neste torrão.

Voltando a Bernardet, ele é um dos que atacam enfaticamente esse estereótipo no cinema brasileiro do que ele vai chamar de “a estética da miséria”. Para o crítico, a banalização da abordagem naturaliza a miséria e despolitiza esse quadro. O pesquisador exige um posicionamento diferente do audiovisual.

É isso o que têm feito produções como o curta-metragem “O Pato” (2021), de Antônio Galdino, que retrata a violência doméstica em um filme gravado no interior da Paraíba. Não é a estética que é explorada, mas são as causas, os efeitos e as saídas.

É assim que ocorre também no mais recente sucesso do cinema nordestino, Bacurau (2019). A narrativa de não-lugar, de cidade fantasmagórica, de espaço em ruína é questionada, colocada em xeque, confrontada até com atores americanos e, por fim, a cidade se estabelece no mapa, com suas tradições e suas novidades. Bacurau sacudiu as audiências e ganhou o prêmio do júri no Festival de Cannes, feito somente alcançado no Brasil por O Pagador de Promessas (1962), também nordestino.

A riqueza visual permanece extremamente proeminente no Nordeste, mas há outros cenários a serem também explorados. Ou o amigo leitor nunca se indagou sobre porque um produto da teledramaturgia, por exemplo, nunca foi gravado em um centro urbano nordestino, destacando a vida metropolitana? Há tão somente a possibilidade de, se acaso algo for gravado para as bandas de cá, precisar ser necessariamente no semiárido? Recife é um dos centros urbanos mais significativos do país, reúne a herança do Brasil-Colônia com uma arquitetura eclética, povoa as ruas com desenvolvimento desenfreado, mistura o mar com o mangue. Agora eu peço que nos esforcemos para rememorar grandes produções audiovisuais calcadas nesta riqueza visual do Recife (não vale mencionar o carnaval e o Galo da Madrugada).

O movimento Manguebeat, liderado por Chico Science, buscava exatamente, além da denúncia social, constituir a valorização de uma identidade própria recifense, de quem vive “da lama ao caos”. Outro morador do Recife, o paraibano Ariano Suassuna – autor do Auto da Compadecida que citamos –, foi também um fundador de movimento a fim de consolidar a cultura local e elevá-la à dimensão de cultura erudita, clássica, a partir de bases populares. O movimento armorial também se estabeleceu com sua força e sua verve, tanto que se transpôs da literatura, do teatro, da música, para as telas. Prova dessa investida de sucesso é que o filme e o seriado transformaram a cidade de Cabaceiras na roliúde nordestina. E ela detém uma coisa preciosa para o cinema, que é a estabilidade climática, com a menor taxa de ocorrência de chuvas no país e uma superexposição de luz. É realmente um dos melhores lugares para gravar na América Latina, tal qual o céu iluminado de estrelas do Seridó paraibano, este ainda pouco explorado – talvez só mais visibilizado em Boi Neon (2015).

No transcorrer dos anos, tal como o Rio São Francisco que corta o Nordeste e agora banha quase todos os estados, esse rio perene da cultura nordestina foi irrigando outros espaços (num sentido metafórico e também literal). Fazendo um rápido parêntese com a história do rio, observe que a água é um fator simbólico bastante explorado na dimensão visual do Nordeste. Do Velho Chico ao Rio Pajeú, toda uma cultura simbólica se estabelece em torno das águas. No Vale do Pajeú, por exemplo, há uma atmosfera de literatura popular em que os poetas dizem matar a sede. É o espaço do batismo e também da irrigação do imaginário desses poetas da chamada poesia matuta, que é também um outro aspecto reproduzido nas telas. No século passado, os cantadores, emboladores, violeiros, repentistas, cordelistas se viram explorados pelas lentes na sua caracterização peculiar, e ainda hoje permanecem. O pai do chamado “novo cordel”, Manoel Monteiro, fez um apelo para que os escritores nordestinos não precisassem usar chapéu de couro, gibão e outros adereços, típicos de vaqueiro que entra na jurema para pegar boi. Não eram necessários ao ato de escrever, então que se deixasse para os vaqueiros.

Ora, continuemos a discutir sobre essa abordagem do Nordeste no vídeo. Os personagens são cheios de expressividade e isso transborda na tela. Em “A pessoa é para o que nasce”, as irmãs cantoras de Campina Grande, conhecidas como As Ceguinhas, não puderam se enxergar, mas se mostraram para o mundo, de forma tão translúcida quanto a cena em que aparecem nuas na praia de Tambaba (PB). Aqui o documentário diz mais sobre as personagens, do que elas mesmas julgam saber. (BERNARDET, 1985).

Amargamos recentemente a morte do grande roteirista dessa obra primorosa, Maurício Lissovskyi e, um pouco antes, a partida da artista Maroca, uma das três irmãs. Eis a mágica do audiovisual: mesmo com as mortes, a história delas está imortalizada na tela, pois se “A pessoa é para o que nasce”, ela não morre. Contudo, é necessário observar, como aponta Bernardet, que “Um registro nunca pode coincidir com a coisa registrada. Todo registro pressupõe um certo arbitrário cultural”. Mas veja! Neste caso em específico, o diretor Roberto Beliner se envolve e envolve as irmãs na produção de tal forma que a obra é ela mesma um produto coletivo de cultura popular, gestado a partir de “situações sinceras do signo de relação que fluem no documentário, frutos de uma observação participante, apaixonada”, avalia Alexandre Zarate Maciel (2011, p. 426).

Vou me encaminhando para o fim. Como toda obra audiovisual, este texto em tom ensaístico também não se encerra aqui. Tem a finalidade de, feito um trabalho transmídia, permanecer rodando na mente inquieta de quem conseguiu assistir a esta discussão até aqui e se reproduzir através das reflexões, produções e audiências que se farão do, sobre e para o Nordeste.

 

“O olhar vê tons tão sudestes

e o beijo que vós me nordestes

arranha céu da boca paulista”

(Chico César – BERADÊRO, 1995).

 

Referências:

 

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

 

MACIEL, Alexandre Zarate. Conviver, sentir, narrar: personagens documentais e

Jornalísticos. Santa Catarina: Estudos em Jornalismo e Mídia - Vol. 8, No 2, p. 417 – 430, julh/dez. 2011.

 

MORAES, Fabiana. Subjetividade: Ferramenta para um jornalismo mais íntegro e integral. Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 204 – 219, jan./jun. 2019.

 

MEDINA, Cremilda. Déficit de abrangência nas narrativas da contemporaneidade. Matrizes, Ano 2, nº 1, 2008.

 

OLINTO, Antônio. Jornalismo e Literatura. Rio de Janeiro: Selo Edições de Ouro, 1954.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Solastalgia na Chapada dos Veadeiros

Eu escrevo este manifesto enquanto a natureza chora raivosa - não do lado de fora da pousada em que estou, mas de dentro de si - pois o dentro ou o fora não possui uma relação com estruturas de alvenaria para determinar o que é ou não casa, ou o que é ou não a referência. As paredes erguidas pelos homens são apenas um sedimento no solo dessa chapada. Nós, excêntricos que somos, costumamos achar que esses imóveis são a centralidade do que pode existir como referência de abrigo. 

Mas e os sapos que cantam à margem da lagoa? São eles desejosos dessas estruturas? Não! A lagoa é o seu lar. E as paquinhas que giram na lâmpada que me ilumina? Essas foram “seduzidas” pelo brilho potente de uma luz que atrai mais do que os vagalumes ou do que a vegetação rasteira que reflete a luz da lua. Essa simples lâmpada de LED mudou o rumo de milhões dessas paquinhas. Como poderia imaginar Thomas Édison? O Iluminismo traz luz e escuridão. 

O que me faz escrever quase com a mesma força com que a água desaba do céu do Cerrado é um sentimento chamado pelo filósofo Glenn Albrecth de solastalgia, uma sensação poderosa, dolorosa, triste de sentir um remorso abissal pelos danos ambientais que impactaram, impactam e vão impactar o meio ambiente no futuro, uma saudade por algo que ainda não se perdeu, de sofrer pela perda de uma casa que deixará muito em breve de existir. As letras pingam forte na tela feito as gotas que crateram o solo. É uma enxurrada de dor e desalento. O som da água se mistura ao toque desse teclado numa sinfonia assíncrona, improvável. É choro fora e dentro! 


Sinto muito enfurecidamente, e não lamentavelmente pois lamentar não transforma nada, por saber que próximas gerações de quilombolas Kalungas, os verdadeiros habitantes deste lugar em que estou, não verão o que eu, homem branco do Nordeste, vi nas terras que lhe são originalmente pertencentes, mas pertencentes num sentido amplo, de pertencimento e não de propriedade. Sinto, vergonhosamente, que novamente uma geração de humanos brancos segue a vilipendiar o espaço que não lhe cabe. Sem ter sequer conhecido os novos Kalungas, me desculpo por saber que ajudei involuntariamente a lhes negar a chance de viver, de existir como Kalungas, como quilombolas. É um manifesto contra mim e contra muitos! 

Assistir às araras-azuis-grandes ou desfrutar do banho gelado das cachoeiras é um prazer que não durará para sempre. Roubei de muitos essa oportunidade. Sinto novamente o peso da exploração sobre esses povos se repetir, agora com o eufemismo de turismo. 


O nosso guia é um Kalunga. Admilson Francisco viveu por muitos anos nas terras onde ele se reconhece como ser. Relata ter vivido sem ver carro passar por anos na região. “Era uma raridade”. Hoje é uma constante. O inevitável “progresso” chegou, e a que custas? Na Cachoeira Ave Maria são mais de 100 metros de queda d’água. Pergunto se o nome se dá pelo formato que remete ao véu da santa, no que ele me responde que, na verdade, a cachoeira recebia os corpos dos homens negros escravizados que eram usados por donos de terra na região para abrir estradas. “Depois do serviço, que eles usavam os escravos, jogavam eles aí”, narra. A santa havia de protegê-los no céu depois de caírem no inferno.

É difícil seguir. As águas que hoje me banham de prazer, lavaram corpos e sangue. A trilha que corta a vegetação abre crateras dentro de mim. Sinto uma invasão. Sinto por invadir. Os trajetos começaram pequenos e foram se alargando, conta Admilson. “Ser humano é assim, vai explorando, desmatando e daqui a pouco onde passava um passam cem”, diz na sua sabedoria. E é por essa observação dele que julgo dizer que em breve não haverá mais tudo isso, só estradas. Na ditadura empresarial-militar, um certo ditador afirmou que governar é construir estradas. São essas estradas que retiram de comunidades como dos Kalunga a chance de existirem como são. Admilson Francisco até fala inconscientemente que normas ambientais engessam o turismo na região: “Coisa do Ibama”. Mas reconhece que vivia melhor na roça, como ente desse ecossistema. “A vida na roça era melhor. Tive que morar na cidade, trabalhar como pedreiro. Nem se compara”, lamenta. Sem saber, mas sentindo, ele sofre aqui de solastalgia. 

Escrevo nesse 8 de janeiro de 2023, bem próximo ao Distrito Federal, na Chapada dos Veadeiros. Enquanto um dos maiores golpes à democracia acontece em Brasília. Choro junto à natureza pelo futuro dos Kalungas, pelo seu futuro, pelo nosso futuro.