segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Bacurau: o filme nordestino que fala de resistência, preconceito e violência atinge meio milhão de espectadores


Bacurau já se tornou um dos grandes nomes do cinema nacional brasileiro e um dos mais importantes da produção contemporânea. Na semana passada, o longa-metragem alcançou a incrível marca de 500 milhões de espectadores. Depois de quase um mês de exibição, o filme deve sair das salas de cinema da maioria das cidades brasileiras, mas segue em cartaz na sociedade.

O longa foi gravado no interior de duas cidades do Rio Grande do Norte, Parelhas e Acari. O pequeno povoado de Barra é que dá vida à comunidade de Bacurau. O enredo mostra um futuro fictício no Brasil de desigualdade, preconceito e apologia à violência, em que políticos tentam extinguir o povoado de Bacurau, utilizando-se de pessoas do Sul do país e de estrangeiros que reforçam a todo instante o preconceito regional contra esses nordestinos. Os moradores da comunidade lutam para que ela não seja extinta do mapa e seus habitantes não sejam dizimados.


A estória tem muitas mortes, na medida em que os gringos se divertem ao exterminar os nordestinos, e é uma forma impactante para falar sobre temas cotidianos como a banalização da violência, a apologia às armas, a ridicularização dos marginalizados, a desvalorização da vida, a bestialização da pobreza. Bacurau tenta mostrar para que futuro iremos retornar se a sociedade continuar cultuando o que valoriza no presente. E, sobretudo, Bacurau trata sobre resistência.



Por ser um faroeste (western) bem elaborado, tecnicamente a película prende bastante o público e aproveita este ponto favorável para colocar o público em cheque, em desconforto ideológico. Bacurau chamou a atenção do mundo, venceu o prêmio do júri de melhor filme no Festival de Cannes, na França, e de melhor filme, melhor direção e crítica internacional no Festival de Lima, no Peru.

A obra dos diretores pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles resultou na contratação de cerca de 800 pessoas e ainda rendeu dinheiro extra para os moradores do povoado de Barra, que trabalharam nas gravações.

Fotos: Divulgação

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Vovô do Samu: condutor socorrista completa 75 anos, continua salvando vidas, e ganha festa dos colegas



Geralmente as pessoas da chamada terceira idade costumam ter uma experiência rotineira com os médicos. Pode ser de uma simples consulta normal com o geriatra até os casos de idas e vindas a vários especialistas. Para seu João Francisco da Silva, um senhor de 75 anos de idade, a experiência com os médicos é diária, mas é de outra forma, já que ele trabalha como condutor socorrista do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu 192).
Mesmo com idade para se aposentar, o motorista de ambulância e socorrista não quis deixar a atividade. Esta semana ele completou 75 anos de idade e 15 anos de carreira como condutor. Seu João está no serviço desde que ele foi implantado em sua cidade, Campina Grande, na Paraíba. Ele foi o condutor do primeiro plantão do serviço, dirigiu a primeira ambulância e realizou a primeira ocorrência.
“Eu lembro até os detalhes, foi numa sexta-feira e de lá pra cá eu me apaixonei por essa profissão”, relatou. Os colegas de trabalho realizaram uma festa pra comemorar o aniversário do samuzeiro. “Ele é um profissional muito competente que veste a camisa pelo serviço, sendo espelho para os demais colaboradores! Chega sempre no horário e mesmo com a idade avançada, realiza ocorrências com destreza em sua condução. Tem um zelo pelo patrimônio público e realiza com afinco essa função. Exemplo de ser humano”, disse o médico Ismael Kim.

A profissão exige bastante das equipes de socorro. Seu João dirige a Unidade de Suporte Avançado, que é designada para os casos mais graves e que tem equipe médica completa. Ele chega a trabalhar em plantões de até 24 horas. “Não tem preguiça, nem corpo mole pra mim. Pode ser o que for de ocorrência, eu faço questão de ir. Acidente, parto, gente ferida, baleada, passando mal. A minha missão é salvar vidas”, afirma. A dedicação e a competência o fizeram ser elevado ao cargo de supervisor de frota.
Antes de virar condutor socorrista, ele exerceu diversas outras atividades e criou os quatro filhos, que já se formaram, casaram e lhe deram um total de quatro netos. Os filhos são dois engenheiros, uma contadora e uma advogada, que seu João faz questão de dizer que formou com muito suor.
Técnico agrícola por formação, João Francisco não descansa nos dias de folga do Samu, mas passa o dia trabalhando em um sítio. “Quando saio do serviço, vou para minha granjinha, cuidar de bicho e de roça, fazer outra coisa que também amo e nem vejo a hora passar”, relatou.
Mas é mesmo no Samu que está a maior realização do idoso. “Quando chega à noite que eu me deito e sei que vou trabalhar no outro dia no Samu, digo para a minha esposa que sou feliz porque vou fazer o que amo quando acordar”, relatou sorridente.

sábado, 13 de julho de 2019

Estudante surdo se forma com conceito A em universidade pública, desenvolve game e destaca ajuda de outros surdos


Matheus Soares revela como grupo de outros surdos o ajudou.

Jogo desenvolvido foi apresentado e aprovado com conceito A.
Quando uma pessoa nasce com um diagnóstico de surdez severa, isto significa dizer que o paciente tem uma possibilidade muito grande de não desenvolver a audição e, por consequência, a fala. Matheus Soares nasceu há 23 anos com este tipo de deficiência. Os pais não descansaram e investiram no tratamento do filho. Apesar de todo o esforço e trabalho com a ajuda de profissionais preparados, o grau avançou para surdez profunda. Mas isso não impossibilitou Matheus de desenvolver a fala e de escutar por meio da ajuda de um aparelho auditivo.
Mesmo com a dificuldade de comunicação, o primeiro curso superior pretendido pelo jovem foi o de Comunicação Social. Largou a vida tranquila em um apartamento de classe média da família no Rio de Janeiro para morar em Campina Grande, na Paraíba, e estudar na Universidade Estadual da Paraíba.
Depois de um período no curso, decidiu mudar e foi estudar Arte e Mídia na Universidade Federal de Campina Grande. Matheus conta que teve muitas dificuldades de adaptação pela falta de acessibilidade e inclusão, mas conseguiu compensar os obstáculos com muita leitura e a ajuda de alunos e professores. “Eu entendo boa parte do que as pessoas falam por meio da leitura labial. Então, quando o professor bota a mão na frente da boca ou fala de costas, eu simplesmente não capto o que está sendo dito. Foi muito difícil, mas eles conseguiram entender em parte, e eu também corri atrás”, disse Matheus.
O fascínio pela animação e o mundo dos games o levou a desenvolver um produto inusitado no curso: um jogo digital. “O Ataque das Galinhas Mutantes” é um game bem humorado em que o fazendeiro tem que se livrar da fúria das galinhas. O jovem contou com a ajuda de amigos e do próprio pai para desenvolver o produto. O trabalho foi aprovado com conceito “A” pela banca da UFCG.
Mas o caminho até essas conquistas não foi tão fácil. Matheus conta que a deficiência criou muita dificuldade na interação. “A surdez, mesmo que não completa, causa muitos problemas de comunicação, o que desenvolve a dificuldade de interação social. E isso é muito sério! Durante muito tempo, me deparei com uma dificuldade de interação, o que prejudica em todas as áreas”, narra.
Contato com grupo de surdos oralizados ajudou Matheus a superar obstáculos.
Mas foi a partir do contato com um grupo de surdos oralizados que Matheus conseguiu se desenvolver e superar os obstáculos. “Desde 2017 eu entrei para esse grupo criado por uma paraibana de João Pessoa. O ‘Diversidade Surda’ reúne pessoas que têm dificuldade na audição e na fala, mas que não se comunicam pela Língua Brasileira de Sinais. Pensar que surdos só falam através da Libras é uma visão muito limitada”, explicou.
O grupo tem mais de 150 participantes e realiza encontros semestrais em estados diferentes do país. “Esse grupo ajudou a melhorar minha autoestima e a ganhar autonomia e confiança. Hoje eu viajo sozinho, sou independente nesse sentido. O nosso grupo está ganhando visibilidade porque não é para falar apenas tecnicamente da surdez, mas é para promover a amizade entre surdos”, disse.
Hoje Matheus desenvolve conteúdo para os perfis do grupo nas redes sociais para ajudar outras pessoas com a mesma deficiência. O jovem ainda está decidindo quais serão os próximos passos da sua história, mas deve retornar para o Rio de Janeiro e se dedicar à área de tecnologia da informação e ciência de dados. Contudo, já tem a certeza que se encontrou no mundo. “É aquela sensação de pertencimento, de se sentir incluído e respeitado. A verdadeira alegria está em conviver entre seus semelhantes.”

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Gari se forma e defende TCC vestido com farda de trabalho: “Antes eu tinha vergonha, hoje tenho orgulho”

Rafael Melo Poeta
Gari falou sobre a invisibilidade social dos agentes de limpeza pública. (Foto: Dje Silva)

“Trabalho e desigualdade social na contemporaneidade: reflexões sobre a invisibilidade dos agentes de limpeza pública”. O tema da pesquisa isoladamente já seria um assunto socialmente rico para qualquer estudante do curso de história de uma universidade pública no interior da Paraíba. Mas o trabalho ganhou ainda mais representatividade e chamou a atenção do campus da Universidade Estadual da Paraíba na cidade de Guarabira quando Ednilson de Pontes Silva, gari, casado, de 31 anos, chegou à instituição vestido com o fardamento de trabalho para defender o trabalho de conclusão de curso.
Familiares, amigos, professores e alunos assistiram à defesa. (Foto: Dje Silva)

Deninho, como é conhecido no local, trabalha como gari na cidade de Pirpirituba desde 2011, quando foi aprovado em um concurso público para a função. Em 2013 ele foi aprovado no antigo vestibular da UEPB para o curso de história e iniciou a faculdade no ano seguinte. Neste mês de junho de 2019 ele concluiu o curso defendendo o TCC em meio a amigos, familiares, professores e outros estudantes vestido com o macacão com o qual trabalha diariamente.
“Antes eu tinha vergonha do meu trabalho, hoje eu tenho orgulho. Quando entrei na faculdade, passei uns dois períodos sem dizer qual era a minha profissão, mas depois vi que não tinha nada de errado em ser gari e que eu devia me orgulhar por exercer uma função importante e honesta, até que relatei minha história para os amigos em uma confraternização da turma e eles ficaram felizes por eu estar podendo ter acesso à universidade”, relatou.

Bolo e lembranças foram temáticos. (Foto: Dje Silva)
Ednilson também é filho de um gari. Seu Miguel Martins da Silva tem 60 anos de idade e continua exercendo o papel na sua cidade até os dias atuais. O filho de seu Miguel teve uma trajetória difícil até se formar. Ele trabalhava pela manhã como gari e estudava à tarde. Para ir de Pirpirituba a Guarabira ele utiliza o ônibus escolar e depois conseguiu comprar uma moto para ir assistir às aulas. O gari e estudante também dividia o tempo com as obrigações de casa, já que foi pai durante o período em que estava fazendo o curso.
Deninho conta que decidiu pesquisar sobre a invisibilidade social que enfrentam os agentes de limpeza por causa da indiferença que sentiu na pele nas ruas. “Eu resolvi falar sobre este tema porque senti o quanto somos discriminados socialmente. Pesquisei sobre o tema e encontrei apenas um estudioso que se debruçou sobre o tema, então decidi mostrar a realidade desses trabalhadores tão sofridos e tão importantes”, disse.

Ednilson agradeceu à orientadora ao receber nota 10. (Foto: Dje Silva)
Mas ele não queria apenas discutir sobre o tema academicamente, queria chamar a atenção de toda a sociedade e, para isso, vestiu-se com a roupa do trabalho. “Eu sempre comentava com minha esposa que qualquer dia faria isso porque sempre vêm para as aulas policiais fardados, advogados de terno, enfermeiros de roupa de trabalho e por que não seria possível um gari vir com o fardamento do seu ofício? Que estranheza isso provoca? Meu objetivo era chocar mesmo e fazer refletir”, explicou.
Ednilson entrevistou dez garis para a elaboração da pesquisa. Ao fim da apresentação, a sua nota foi a máxima, 10, e as lembranças desse momento e o bolo de confraternização tiveram como tema os agentes de limpeza pública. “A gente que vem de baixo sabe o significado disso. É por isso que é tão importante a universidade pública de qualidade para quem não tem condições de pagar”, disse o gari e agora professor Ednilson Pontes.

domingo, 9 de junho de 2019

“A arte trouxe nosso filho para essa vida”, diz mãe de criança autista que é artista plástico

Texto: Rafael Melo Poeta

O mundo de Mateus é um universo colorido, recheado de cores vibrantes, de muita energia e uma “chuvinha” de sensibilidade. É fácil entender que ele é um menino muito especial. Mateus tem três anos de idade. Ele vive com a mãe na cidade de Campina Grande, na Paraíba. E é ela, Maria Eduarda, que nos relata sobre como a arte mudou a vida da família.
Os pais receberam o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista aos 2 anos e 7 meses de vida. Neste momento começava a busca por profissionais e tratamentos para que o filho pudesse evoluir dentro das especificidades características do autismo. Foi por meio da Terapia Ocupacional que Duda começou a pintar com o filho. “A terapeuta ocupacional nos motivou a iniciar atividades com tinta de dedo no papel, pois ele não gostava de se sujar e deveríamos criar uma maneira de mudar esse cenário. Eu tentei algumas vezes e percebia que não fluía muito. Um dia, peguei um quadro velho, algumas tintas e pincel e o deixei interagir para perceber se ele iria se interessar mais. Eu fiquei observando de longe e identifiquei uma relação diferente dele com a tela e logo percebi que ali havia uma potencialidade. Comecei a incorporar essa atividade como uma terapia, um momento meu e dele”, relata.

Começava a se desenhar uma nova realidade na vida de Mateus. Antes disso, a mãe precisou superar alguns desafios, como o afastamento do trabalho para dar atenção às necessidades do garoto e a mudança de cidade para integrá-lo à família e estimular a interação social. Mas era mesmo por meio da tela que Mateus tentava se conectar com o mundo, com as pessoas e com ele próprio. “Ele ainda não possuía comunicação verbal, apenas ecolalia. Com o tempo percebi que ele tentava falar o nome das cores e fiquei muito emocionada. Ali iniciou a comunicação verbal dele. Ele foi perdendo a rejeição à sujeira, compreendendo melhor o espaço, melhorando a coordenação motora”, relembra a mãe.
A terapia deu lugar na verdade a um grande prazer na vida de Mateus e da família e a uma espécie de tratamento alternativo que o fez evoluir significativamente, sobretudo na fala. “A pintura trouxe a comunicação verbal dele. Não que todos os tratamentos não sejam importantes e complementares. Claro que ele não estaria falando tão bem sem uma fonoaudióloga. Não estou tirando esse mérito. Ela é maravilhosa! Mas, normalmente, as crianças autistas precisam de algo que as motivem, que seja um elo entre elas e o mundo. Eu atribuo o elo do Mateus à pintura. Ele fica muito feliz quando pinta”, explica.

Como todo menino, Mateus pinta o sete, é bastante ativo, mas é mesmo nas tintas que ele derrama sua energia. “Ele pede para eu comprar telas, diz que quer a tela grande. Ele vai comigo e escolhe as tintas na loja. Acho que todo esse processo o aproxima das pessoas, ajuda na socialização, na introdução dele a novos ambientes. Ele sabe exatamente o que quer pintar e fica com raiva se sugerimos algo”, diz.
Pouco a pouco os quadros vão tomando forma, formando um ser artista e informando a todos sobre muitas lições do autismo que não se escreve, não se fala, mas que se vê e se sente. Duda conta que ele começa desenhando pequenos objetos e seres, desde animais a personagens de desenhos preferidos. Depois as ideias vão sendo cobertas, de modo que não sobra nenhum centímetro incolor na tela. Não há espaço cinza na vida dele. A obra é sempre finalizada com uma “chuvinha”, como costuma dizer, que é um respingar de tinta por cima, e o resultado é sempre uma enchente para os olhos dos apreciadores.

Curiosamente, o trabalho final é sempre uma pintura abstrata, muito embora os autistas tenham mais facilidade com o mundo concreto. “Acredito que é a maneira dele expressar os seus sentimentos e de como ele enxerga as coisas e o mundo. É a percepção dele. Eu também fiquei bastante surpresa pelo Mateus pintar abstrato, mas observando os desenhos dele, percebo que ele realmente não consegue fazer um desenho com detalhes como as crianças da idade dele. Ele faz rabiscos, que pra ele são objetos e personagens”, explica Maria Eduarda. Essa é uma experiência palpável de amor também. Duda decidiu se empenhar na vida do filho e incentivar as artes plásticas como forma de inseri-lo no mundo. Hoje, os quadros são comercializados, Mateus participa de exposições e até de oficinas com outras crianças, autistas ou não. Um perfil foi criado no Instagram chamado EleArtista, um trocadilho semântico entre artista e autista, para divulgar o trabalho e chamar a atenção para as múltiplas possibilidades das pessoas com TEA.
“A arte nos deu esperança. Nós tínhamos uma criança que não falava, que não interagia, que não olhava no olho por muito tempo, que não era capaz de expressar seus sentimentos. Hoje ele é muito mais capaz de fazer tudo isso com muito mais autonomia, e tenho certeza que a arte ajudou muito. A arte trouxe nosso filho para essa vida. Hoje vemos ele sorrindo e cada vez mais feliz com suas descobertas. Ele diz que quando crescer vai ser pintor e pintar muitos quadros bem grandes. Isso nos deixa muito felizes, por saber que ele tem perspectiva de uma autonomia. Que ele tem uma perspectiva de crescer e fazer algo que ame fazer. Esse é o desejo que qualquer pai e mãe têm em relação ao futuro do seu filho. Ficamos felizes por ele ter descoberto algo que ele gosta de fazer, que é natural para ele, que o deixa feliz, e que permite ele se regular e transmutar as suas dificuldades”, encerra mãe.




quinta-feira, 4 de abril de 2019

Cem anos de solidão: uma obra para inglês não ver



É no local que o escritor se faz universal. No mais peculiar, particular, singular, há substância para o global, o que se denominaria de glocalidade. O que se inspira no que já é universal nasce sem originalidade, sem identidade. A obra de Gabriel Garcia Marquez é uma das mais significativas neste contexto, o que justifica o fato de ter lhe rendido o prêmio Nobel da Paz. Mas o seu trabalho não se resume apenas a uma construção regional que se notabilizou. Apesar de ser circunscrita à Colômbia, a Macondo descrita por Gabriel poderia estar em muitos outros países, excetuando-se, naturalmente, o que é tão particular que só se conceberia na própria Colômbia.
Depois de se universalizar, Cem anos de solidão vive agora um novo processo intermediado pela produção de uma série para a Netflix, plataforma e formatos que devem alçar a estória a um patamar globalizante ainda maior. Uma das primeiras inquietações que nascem é aquela sobre como irão transpor o livro para a tela. Se essa é uma missão difícil em qualquer trabalho de intermídia, nesse caso se agrava porque como o próprio Garcia Marquez pontuou, o seu livro foi escrito para não ser transcrito para o cinema, era uma tentativa de desvirtualizar a magia pela sétima arte que nascia no século passado. Não somente por isso, mas também por essa razão, o autor se valeu do rico realismo fantástico para compor suas cenas. Na época era difícil reproduzir a cena de Remédios subindo aos céus num enrolar de lençóis.
Outra característica marcante da obra são os tempos diluídos em uma narração que corre na medida do pensamento e não necessariamente no tempo cronológico. Ora o presente é sequenciado pelo passado, que antecede o futuro. Da mesma forma o narrador abandona um personagem para falar de outro sem nenhum marcador claro e expressivo dessa ação. Há momentos em que não sabemos sobre qual Buendía se retrata e nesse ponto reside uma das belezas do livro. Com a imagem, será difícil desvirtualizar.
Desse modo, fico a imaginar como transpor tamanho realismo fantástico. É tanta complexidade que só se concebe na abstração. Mas uma hora os seus filhos sabiam que os recursos permitiriam gravar a saga dos Buendía com um carinho próximo do qual Gabriel a criou. Cem anos de solidão será agora uma história/estória de temporadas, de episódios, mas não se pode deixar de folhear os incansáveis receios de Úrsula. No livro dá pra tocar nos Buendía, sabe? Parece que eles continuam ali vivendo dentro daquelas páginas. A trama é tão forte que se aceitam tantas coisas que só se acredita lendo e não vendo, como São Tomé. É uma abstração mais compreensível na própria abstração do que na concretude da imagem. Definitivamente, não é uma obra pra inglês ver.