Foto: Rafael Melo |
Sim! O Brasil tem um vencedor do prêmio Nobel da Paz. Aliás, um não, vários...
Na última terça-feira, 28, foi o Dia do Soldado Desconhecido. E nesta quarta-feira, 29, é o Dia Internacional de Solidariedade com o Povo da Palestina. As datas me fizeram resgatar a história deste vencedor do prêmio Nobel da Paz, que mora em Campina Grande (PB) e atende gentilmente (ou às vezes não muito) pelo apelido de "Suez". Isso mesmo, o nome do canal que corta o Egito.
É na Capela Cristo Rei, por trás do shopping Luíza Motta, que se encontra facilmente José da Silva Soares. Entre as ações na igreja e na praça, o ex-militar cumpre as horas do dia numa missão infindável. Pinta a parede, ajeita o telhado, varre a praça Tobias di Pace, corta as plantas e assim segue sua tarefa.
A foto acima não traduz o humor desse senhor que, aos 81 anos de idade, faz de tudo uma piada. A vida vira brincadeira em qualquer cena e, no momento de seriedade, se retrai com a sisudez de quem viu muito: da dificuldade na infância em Sapé (PB) à hostilidade da Faixa de Gaza nos anos 1960.
A sua casa fica pertinho da Capela. É uma das poucas que mantêm grade vazada na frente com quintal aberto e vista da rua e ele se orgulha disto. Ao abrir a porta da sala, o visitante vai dar de cara com uma bandeira da Organização das Nações Unidas e uma bandeira do Brasil em dois mastros no centro da casa. Orna um dos mastros um capacete azul pendurado de lado. É o capacete usado em 1962 em Gaza.
Foto: Rafael Melo |
No escritório e no corredor, as fotos e os slides em transparência guardam a memória da maior viagem já feita: à Palestina. "Foi pura aventura. Eu queria ser paraquedista", conta.
Começou no Exército como sapador mineiro, que era o encarregado de desarmar bombas e minas. "Só podia errar uma vez", conta em tom sempre descontraído. Não imaginava o campo minado que iria enfrentar em solo palestino...
O jovem José da Silva tinha acabado de sair do EB depois de ter servido como soldado, no Rio de Janeiro, em 1961. Dois dias depois, soube do chamamento para a Missão de Paz da ONU na Faixa de Gaza. Inscreveu-se, pois era ali que poderia estar o futuro do jovem paraibano, cujo pai havia morrido na infância e que havia perdido três irmãos pequenos. O cenário de dificuldade já era conhecido, o inesperado do estrangeiro e da guerra não.
"Foi um mês até o Egito de navio. Lá fiquei durante um ano", relembra.
Foto: Rafael Melo |
O deserto egípcio tornava ainda mais árida a missão. Suez foi para o pelotão de infantaria, nas guarnições destinadas a evitar o conflito entre árabes e judeus. Foram seis meses na fronteira e seis meses no comando. Enquanto esteve como sentinela e patrulheiro, um só tiro não saiu do seu rifle.
A Missão de Paz da ONU juntou tropas do Brasil, Noruega, Dinamarca, Suécia, Canadá, Iugoslávia, Índia, Indonésia, Finlândia e Colômbia. No Batalhão de Suez, mais de 6.300 brasileiros serviram.
Suez guarda quadro com brasão das Nações participantes. Foto: Rafael Melo |
"Era muita tensão. Ficávamos no solo egípcio do lado da Faixa de Gaza. Israel patrulhava seu próprio território e não aceitava tropas de outros países, principalmente porque tinha indianos muçulmanos na Missão", conta.
Em 1988 o Prêmio Nobel da Paz foi atribuído a todos os que fizeram parte da Missão de Paz da ONU, notadamente o Batalhão de Suez. Entre eles, José da Silva Soares. A medalha, que precisou ser comprada pelos filhos, veio da Noruega e chegou quase 60 anos depois de quando esteve em Gaza. Ele a carrega cuidadosamente no peito sobre o uniforme azul, guardado desde aquele tempo.
Foto: Rafael Melo |
A ação foi considerado Serviço Nacional Relevante pelo Governo Federal. Apesar de toda essa história, ele, assim como os demais "boinas azuis", não fizeram jus à pensão vitalícia destinada aos ex-integrantes do Batalhão de Suez. O Projeto de Lei 332/2011 foi aprovado somente em maio de 2023, mas foi vetado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. A maior parte dos boinas azuis já partiu para outra missão em outra dimensão, sem o devido reconhecimento.
Seu Suez segue, contudo, acreditando na força da Missão de Paz como recurso para contornar a guerra.
Para aplacar a dor da falta de reconhecimento, fiz-lhe um poema, a maior honraria que posso conceder ao meu sogro:
Sapé,
Tuas ruas têm meus passos
Teu compasso me acompanha
Aquele que o mundo ganha
Sempre tem o seu regasso
Teu pasto foi meu caminho
Lá nos tempos de guri
Fui o rei do abacaxi
Com a coroa de espinho
O teu cinema exibia
A história de tanto canto
Que sai do meu recanto
Buscando uma outra via
Parti e aportei no Rio
Rio, Rio de Janeiro
Junto a um batalhão inteiro
Sai de lá num navio
Egito foi meu destino
Vi o Canal de Suez
Outro universo se fez
Praquele pobre menino
O deserto que enfrentei
Preencheu o meu vazio
Depois voltei para o Rio
E pra Sapé retornei
Ao retornar à minha terra
Léguas na sola e no joelho
Achei Raimunda Coelho
Minha namorada eterna
Pra viver uma vida terna
Cinco filhos e uma filha
De uma bonita família
Sou a figura paterna
Aos oito anos de idade
Perdi o meu pai aos prantos
Hoje aos oitenta anos
Sigo com felicidade
Levo a medalha no peito
De prêmio Nobel da paz
Quero viver muito mais
Com gratidão e respeito
O tempo só é bem-vindo
Se podemos reviver
Agora eu posso rever
Tudo o que tenho vivido
Uma taça, um vinho e um riso
Uma piada de salão
Uma outra de porão
Muito trabalho e moído
Se posso deixar legado
Que seja o do meu humor
Brinco porque tenho amor
Pelo meu patriarcado
Amo, não falo, mas sinto
Sou soldado, mas sou manso
Um coração de remanso
Nossa casa é o meu recinto