segunda-feira, 17 de junho de 2019

Gari se forma e defende TCC vestido com farda de trabalho: “Antes eu tinha vergonha, hoje tenho orgulho”

Rafael Melo Poeta
Gari falou sobre a invisibilidade social dos agentes de limpeza pública. (Foto: Dje Silva)

“Trabalho e desigualdade social na contemporaneidade: reflexões sobre a invisibilidade dos agentes de limpeza pública”. O tema da pesquisa isoladamente já seria um assunto socialmente rico para qualquer estudante do curso de história de uma universidade pública no interior da Paraíba. Mas o trabalho ganhou ainda mais representatividade e chamou a atenção do campus da Universidade Estadual da Paraíba na cidade de Guarabira quando Ednilson de Pontes Silva, gari, casado, de 31 anos, chegou à instituição vestido com o fardamento de trabalho para defender o trabalho de conclusão de curso.
Familiares, amigos, professores e alunos assistiram à defesa. (Foto: Dje Silva)

Deninho, como é conhecido no local, trabalha como gari na cidade de Pirpirituba desde 2011, quando foi aprovado em um concurso público para a função. Em 2013 ele foi aprovado no antigo vestibular da UEPB para o curso de história e iniciou a faculdade no ano seguinte. Neste mês de junho de 2019 ele concluiu o curso defendendo o TCC em meio a amigos, familiares, professores e outros estudantes vestido com o macacão com o qual trabalha diariamente.
“Antes eu tinha vergonha do meu trabalho, hoje eu tenho orgulho. Quando entrei na faculdade, passei uns dois períodos sem dizer qual era a minha profissão, mas depois vi que não tinha nada de errado em ser gari e que eu devia me orgulhar por exercer uma função importante e honesta, até que relatei minha história para os amigos em uma confraternização da turma e eles ficaram felizes por eu estar podendo ter acesso à universidade”, relatou.

Bolo e lembranças foram temáticos. (Foto: Dje Silva)
Ednilson também é filho de um gari. Seu Miguel Martins da Silva tem 60 anos de idade e continua exercendo o papel na sua cidade até os dias atuais. O filho de seu Miguel teve uma trajetória difícil até se formar. Ele trabalhava pela manhã como gari e estudava à tarde. Para ir de Pirpirituba a Guarabira ele utiliza o ônibus escolar e depois conseguiu comprar uma moto para ir assistir às aulas. O gari e estudante também dividia o tempo com as obrigações de casa, já que foi pai durante o período em que estava fazendo o curso.
Deninho conta que decidiu pesquisar sobre a invisibilidade social que enfrentam os agentes de limpeza por causa da indiferença que sentiu na pele nas ruas. “Eu resolvi falar sobre este tema porque senti o quanto somos discriminados socialmente. Pesquisei sobre o tema e encontrei apenas um estudioso que se debruçou sobre o tema, então decidi mostrar a realidade desses trabalhadores tão sofridos e tão importantes”, disse.

Ednilson agradeceu à orientadora ao receber nota 10. (Foto: Dje Silva)
Mas ele não queria apenas discutir sobre o tema academicamente, queria chamar a atenção de toda a sociedade e, para isso, vestiu-se com a roupa do trabalho. “Eu sempre comentava com minha esposa que qualquer dia faria isso porque sempre vêm para as aulas policiais fardados, advogados de terno, enfermeiros de roupa de trabalho e por que não seria possível um gari vir com o fardamento do seu ofício? Que estranheza isso provoca? Meu objetivo era chocar mesmo e fazer refletir”, explicou.
Ednilson entrevistou dez garis para a elaboração da pesquisa. Ao fim da apresentação, a sua nota foi a máxima, 10, e as lembranças desse momento e o bolo de confraternização tiveram como tema os agentes de limpeza pública. “A gente que vem de baixo sabe o significado disso. É por isso que é tão importante a universidade pública de qualidade para quem não tem condições de pagar”, disse o gari e agora professor Ednilson Pontes.

domingo, 9 de junho de 2019

“A arte trouxe nosso filho para essa vida”, diz mãe de criança autista que é artista plástico

Texto: Rafael Melo Poeta

O mundo de Mateus é um universo colorido, recheado de cores vibrantes, de muita energia e uma “chuvinha” de sensibilidade. É fácil entender que ele é um menino muito especial. Mateus tem três anos de idade. Ele vive com a mãe na cidade de Campina Grande, na Paraíba. E é ela, Maria Eduarda, que nos relata sobre como a arte mudou a vida da família.
Os pais receberam o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista aos 2 anos e 7 meses de vida. Neste momento começava a busca por profissionais e tratamentos para que o filho pudesse evoluir dentro das especificidades características do autismo. Foi por meio da Terapia Ocupacional que Duda começou a pintar com o filho. “A terapeuta ocupacional nos motivou a iniciar atividades com tinta de dedo no papel, pois ele não gostava de se sujar e deveríamos criar uma maneira de mudar esse cenário. Eu tentei algumas vezes e percebia que não fluía muito. Um dia, peguei um quadro velho, algumas tintas e pincel e o deixei interagir para perceber se ele iria se interessar mais. Eu fiquei observando de longe e identifiquei uma relação diferente dele com a tela e logo percebi que ali havia uma potencialidade. Comecei a incorporar essa atividade como uma terapia, um momento meu e dele”, relata.

Começava a se desenhar uma nova realidade na vida de Mateus. Antes disso, a mãe precisou superar alguns desafios, como o afastamento do trabalho para dar atenção às necessidades do garoto e a mudança de cidade para integrá-lo à família e estimular a interação social. Mas era mesmo por meio da tela que Mateus tentava se conectar com o mundo, com as pessoas e com ele próprio. “Ele ainda não possuía comunicação verbal, apenas ecolalia. Com o tempo percebi que ele tentava falar o nome das cores e fiquei muito emocionada. Ali iniciou a comunicação verbal dele. Ele foi perdendo a rejeição à sujeira, compreendendo melhor o espaço, melhorando a coordenação motora”, relembra a mãe.
A terapia deu lugar na verdade a um grande prazer na vida de Mateus e da família e a uma espécie de tratamento alternativo que o fez evoluir significativamente, sobretudo na fala. “A pintura trouxe a comunicação verbal dele. Não que todos os tratamentos não sejam importantes e complementares. Claro que ele não estaria falando tão bem sem uma fonoaudióloga. Não estou tirando esse mérito. Ela é maravilhosa! Mas, normalmente, as crianças autistas precisam de algo que as motivem, que seja um elo entre elas e o mundo. Eu atribuo o elo do Mateus à pintura. Ele fica muito feliz quando pinta”, explica.

Como todo menino, Mateus pinta o sete, é bastante ativo, mas é mesmo nas tintas que ele derrama sua energia. “Ele pede para eu comprar telas, diz que quer a tela grande. Ele vai comigo e escolhe as tintas na loja. Acho que todo esse processo o aproxima das pessoas, ajuda na socialização, na introdução dele a novos ambientes. Ele sabe exatamente o que quer pintar e fica com raiva se sugerimos algo”, diz.
Pouco a pouco os quadros vão tomando forma, formando um ser artista e informando a todos sobre muitas lições do autismo que não se escreve, não se fala, mas que se vê e se sente. Duda conta que ele começa desenhando pequenos objetos e seres, desde animais a personagens de desenhos preferidos. Depois as ideias vão sendo cobertas, de modo que não sobra nenhum centímetro incolor na tela. Não há espaço cinza na vida dele. A obra é sempre finalizada com uma “chuvinha”, como costuma dizer, que é um respingar de tinta por cima, e o resultado é sempre uma enchente para os olhos dos apreciadores.

Curiosamente, o trabalho final é sempre uma pintura abstrata, muito embora os autistas tenham mais facilidade com o mundo concreto. “Acredito que é a maneira dele expressar os seus sentimentos e de como ele enxerga as coisas e o mundo. É a percepção dele. Eu também fiquei bastante surpresa pelo Mateus pintar abstrato, mas observando os desenhos dele, percebo que ele realmente não consegue fazer um desenho com detalhes como as crianças da idade dele. Ele faz rabiscos, que pra ele são objetos e personagens”, explica Maria Eduarda. Essa é uma experiência palpável de amor também. Duda decidiu se empenhar na vida do filho e incentivar as artes plásticas como forma de inseri-lo no mundo. Hoje, os quadros são comercializados, Mateus participa de exposições e até de oficinas com outras crianças, autistas ou não. Um perfil foi criado no Instagram chamado EleArtista, um trocadilho semântico entre artista e autista, para divulgar o trabalho e chamar a atenção para as múltiplas possibilidades das pessoas com TEA.
“A arte nos deu esperança. Nós tínhamos uma criança que não falava, que não interagia, que não olhava no olho por muito tempo, que não era capaz de expressar seus sentimentos. Hoje ele é muito mais capaz de fazer tudo isso com muito mais autonomia, e tenho certeza que a arte ajudou muito. A arte trouxe nosso filho para essa vida. Hoje vemos ele sorrindo e cada vez mais feliz com suas descobertas. Ele diz que quando crescer vai ser pintor e pintar muitos quadros bem grandes. Isso nos deixa muito felizes, por saber que ele tem perspectiva de uma autonomia. Que ele tem uma perspectiva de crescer e fazer algo que ame fazer. Esse é o desejo que qualquer pai e mãe têm em relação ao futuro do seu filho. Ficamos felizes por ele ter descoberto algo que ele gosta de fazer, que é natural para ele, que o deixa feliz, e que permite ele se regular e transmutar as suas dificuldades”, encerra mãe.