sábado, 12 de novembro de 2011

A matéria do dia

Contar os fatos a partir da minha rotina puxada e cheia de cobranças capitais se tornou redundantemente uma rotina. Mas não me envergonho e começo novamente esta história a partir das muitas preocupações que me afligiam antes de o jornal ir ao ar. Estava submerso em egocentrismo e preciosismo desmedidos, esperava ansioso pela exibição de uma produção minha. Não era o cuidado com o cadeirante que denunciava a falta de respeito para consigo que me deixava daquele jeito, mas simplesmente a minha satisfação pessoal em ver o meu produto em meio à opinião pública era que me impulsionava os olhos e a mente com demasiada força para a minha reportagem. Apoderei-me do que é notoriamente público e achava por direito ter patenteado em meu nome a vida das pessoas que encenavam o drama da vida real numa peça de teatro que produzi para telespectadores sofregamente carentes de boas e absurdas histórias. Parece que gostam de viver o sofrimento dos outros para esquecerem-se dos seus. Àquela altura a rispidez em meus atos aflorava, me contorcia a espera da grande reportagem, de muita repercussão e pouca intervenção social.

Sou convidado pelo porteiro da TV em que estagio para receber um homem que quer falar com o meu chefe. Subo imediatamente e em passadas largas, seguras, confiantes, pois estou habituado naquele ambiente. Penso em despachar rapidamente a pessoa que certamente cobraria uma matéria de comunidade falando sobre os buracos da sua rua. Isto não vale para mim, imagino que os grandes gênios somente construíram imaculadas obras primas. Ilusão!

Deparo-me com um senhor entre seus 40 e 50 anos sofridos, a corcunda denuncia o que o olhar e o sorriso amarelo por trás da barba descuidada me confirmariam. Conversarei com um pobre, merda! A violência da palavra pode chocar, mas certamente traz o que nosso íntimo e nossa mente castigada na sociedade do consumismo sentem. Sou indiferente às primeiras palavras proferidas pelo homem, mas a história me comove o necessário para lembrar que ainda sou cristão. Ele pede para que alguém o ajude, pois passa necessidades em casa. Mando aguardar e desço para enfim vislumbrar, certificando-me da minha inútil inteligência, a matéria que produzi. Sou tão contagiando pelo meu momento inteiramente auto-suficiente que esqueço de lembrar ao meu chefe sobre o homem.

Como estou de bom humor, depois dos imerecidos elogios no trabalho, resolvo atendê-lo e analisar o seu pedido. Encontro um outro homem, cabisbaixo, pensativo e, em seguida, agitado. Não consigo sequer chegar perto que ele se levanta e num surto voluptuoso por uma ajuda qualquer implora à minha frente para que o ajude. O homem é acompanhado pelo seu filho, que tem mais ou menos a minha idade, e eu os observo. O seu pedido é simples, quer algum dinheiro para comprar comida para a casa. Ainda assim, não sou tocado e tento administrar com frieza a situação, mas, num dado momento, numa ação instintiva e desesperada de quem encara diariamente os gritos da fome me vejo diante de um pai de família que implora por algum dinheiro. Como é triste ver um homem de respeito, de valor, do Sertão, ter que estender a mão a um esquálido filho de papai que nunca entendeu de perto o que é dormir agradecendo aos céus pela bolacha seca que dividiu com os irmãos. O pai me relata que a filha de sete anos e a esposa comeram um pedaço de melancia no almoço. É a denúncia de fracasso pessoal, ele ameaça baixar a cabeça, envergonhado de precisar confessar a um estranho que não está conseguindo botar comida na mesa. Ele tenta se convencer de que não é culpa dele e sim do sistema, mas no fundo um cabôco do Sertão da Paraíba quer bater no peito e dizer a todos que criou e deu de comer a seus filhos com muito trabalho e suor, mas sem deixar nenhum passar fome.

Agora sim sou tocado! Penso em como o filho dele, que teve oportunidades abruptamente destoantes das que vivenciei, poderia ter uma história diferente. Como posso julgar alguém pela sua classe? E como julgá-lo se ele se envolvesse no mundo do crime? Ver a irmã de sete anos e os pais passarem fome, além da própria fome sentida deve ser duro. Mas ele acompanha o pai e espera a minha resposta muito mais receoso do que o próprio pai. O único dinheiro que tenho tiro da carteira e o explico que apenas no outro dia poderei dar uma ajuda decente. Enquanto falo, seguro duas notas de dois reais. O filho observa e segue com os olhos cada movimento que faço com as mãos enquanto conversa, parece nunca ter visto dinheiro algum, ele tenta atrair com o magnetismo do estômago o dinheiro que seguro. É a certeza de uma janta digna antes de dormir. Sou tão ingênuo e amador que passo as notas receitando-lhes comprar um sanduíche, que mente essa minha! Certamente, o homem fará daquele pouco dinheiro que gasto diariamente com chocolate, a compra de um cuscuz, leite e pão.

Eles se vão na promessa de voltar no outro dia. Após o jornal é hora de descer para jantar o lanche que a TV compra na melhor padaria e nos fornece. Ao colocar um pó um os alimentos no microondas, lembro-me que já reclamei por termos apenas sete reais para fazer o nosso lanche. A analogia com o fato recém vivenciado por mim e o comentário nem precisam ser feitos. Eles dividem metade de uma melancia. Algumas pessoas me perguntaram se não seria um golpe, a estas pessoas digo que somente quem viu uma súplica estampada no olhar de quem sente fome tem a certeza, por alguns instantes, de que a mentira nunca existiu.

Um dia após o ocorrido passo a tarde inteira me perguntando sobre quanto dá a eles, pois eu havia prometido e promessa é dívida, ah se arrependimento matasse. É que depois da minha ótima noite de sono na minha casa confortável já nem lembro que me comovi com aquela história, mesmo assim resolvo dar-lhes vinte reais. É mais para me reassegurar da minha bondade e preocupado com a minha salvação do que qualquer outra coisa.

Como combinado, chego à porta do trabalho no meu carro, que eu tanto reclamo por não ter ar-condicionado, e avisto os dois à minha espera. O primeiro detalhe que observo é que as roupas são as mesmas de ontem, fui realmente contaminado por essa febre das aparências. Não quero nem perder muito tempo com eles, chego, desejo boa noite, tiro o dinheiro do bolso e lhes dou. Já me preparava para descer e engolir alguns sapos e matar alguns leões na redação quando decido observar os dois homens. O pai anda muito rápido com o dinheiro na mão, ele leva as mãos aos céus de instante em instante e agradece a Deus. O filho tem até dificuldade para acompanhar o seu compasso, ele corre, dá uma tapa nas costas do pai e diz: “tá vendo papai, conseguimos” enfim, se abrem em sorrisos longos e verdadeiros. Isto derruba a minha fortaleza que eu imaginava existir. Continuo parado olhando os dois, o meu sorriso é discreto, mas sublime, e acompanha os seus passos até o perder de vista.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ode a um ídolo

Homenagem a todos os pais


A tua barba já está grisalha

E eu afago o teu pouco cabelo

O labor te deixou cansado

Mas o sorriso continua o mesmo

Tentavas esconder a angústia

Quando desabava o teu chão

Disfarçavas e sorrias pra gente

Mas o olhar guardava a preocupação

De nunca deixar faltar

O pão de cada em dia em nossa mesa

Não faltou, mas e se faltasse

O amor não faltaria com certeza

A custo e com muito suor

Trabalhavas dia a dia sem parar

E se estava difícil te calavas

Para não nos preocupar

Me desculpa se contigo não dividi

Tantos momentos bons de alegria

Se com outros procurei me divertir

Enquanto você em casa não dormia

Me desculpa quando eu só te procurava

Pra falar dos problemas que eu trazia

Das angústias, dos medos e frustrações

Que você pacientemente ouvia

Fostes o conselheiro, o meu

Fiel escudeiro, fostes o meu divã

E quando eu não tinha sono, cantastes

Mais que Caetano ou que qualquer Djavan

Quando uma porta sem piedade se fechava

Você me dava esperança

Eu cresci como sonhava

Mas o mundo me faz querer ser aquela criança

Que quando de medo chorava

Encontrava em teus braços o conforto

Deleitava o pequeno corpo em teu peito

E já se sentia seguro de novo

Pai eu fico descontente

Por não te trazer nenhum presente

Sei que isso não te deixa magoado

Pois o que importa é eu estar ao teu lado

O seu dever está cumprido

Já sou um homem formado

Se te recompensei, não sei

Mas, muito obrigado.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Vídeo de Jessier Quirino contando a história do Matuto no cinema

Matuto no cinema poetizada - de Rafael Melo

Matuto do interior

Nunca pude ser doutor

Nem fui filho de fazendeiro

Mas com os tustão que ganhei

Pra capitá viajei

Fui ver firme estrangeiro


Chegando da capitá

Em Itabaiana na praça

Comecei a discursar

E disse assim: “má rapá”

Eu fui lá na capitá rapá

E vi vi um firme mafioso

Pense num firme internacioná

Os matuto foram chegando

E a negrada se sentando

Pro mode me escutar


Aí eu disse que no firme

Três artista existia

O bandido que matava

O artista que salvava

E o artista que sofria


O bandido que matava

Digo isso sem mentira

Junto com os seus compassas

Armou uma grande trapaça

Amarrou com cipó de imbira

O artista que sofria

Mas esqueceu do que salvava


E pense numa falta de sorte

Do artista que sofria

Ele morreu de tentar

Mas porém não conseguia

Porque apesar de ser forte

Imbira dos Estados Unidos

Num tem no mundo quem se solte


Perigoso que só buchada azeda

Invocado que só fiscal de gafieira

Mais sério que um porco mijando

A carona do bandido

Na tela foi se alargando


Pois o bandido bicho apontou o dedo

Bem na cara do artista

Que de nada tinha medo

E amarradinho na imbira

Ouviu o bandido falar

Num sei quê lá, Num sei quê lá

Num sei quê lá, Num sei quê lá


Mas ele num se amedrontou

O bicho era muito macho

olhou para o bandido tranquilo

Olhou para cima de baixo

E amarradin assim no chão

Disse: “Num sei quê lá

Num sei quê lá o que meu irmão?”


Meu amigo esse bandido

Ficou meio enfurecido

E feito um cururu no sal

Pegou o artista pela nuca

E disse: “Num sei quê lá,

Num sei quê lá o que?

Seu felá da puta”


Mas o artista tava era calmo

E continuou tranquilo

Olhou para cara do bandido

Má rapái e disse: “Num sei quê lá,

Num sei quê lá um carai?”


Má o bandido pegou um ah

Disse num tem quem me segure

Pegou uma chibata com a mão

Feita de pneu de girola de caminhão

Mais comprida que língua de manicure


E deu-lhe uma chibatada

Má foi tão aparentada

A um coice de besta parida

Que da tábua do queixo

Ao corte oreia do artista

Ficou escrito o nome

FIRESTOOONE


Eu sei que no meio dos bandido

Tinha um ator infiltrado

Que era do lado do artista

E tava mais camuflado

Que rapariga de pastor

Num tinha quem desconfiasse

Num tinha quem desconfiasse


Aí ele se encostou

Num cantinho assim do lado

E ele tinha um relógio

Pra telefone puxado

E ele passou o bizú

Pra polícia lá embaixo

E quando todos podiam escutar

O ator disse: “Num sei quê lá,

Num sei quê lá, Num sei quê lá”


E a polícia toda atenta

Ouviu tudo pelo rádio

Mas nos Estados Unidos

A polícia não é polícia

Se veste de adevogado


Eu sei que depois de feito

Todo o comunicado

A polícia passou um rádio

Chamou os outros ligeiro

Disse: “Acuie, acuie, acuie

todos os carros que o

negócio é dismantelo


Aí os carros acuiaram

Os carros acuiaram

Os carros acuiaram

E quando no local chegaram

Aí é que foi dismantelo

No prédio tinha mais carro

Que número de romeiro

Nos pés de padim padre Ciço

Na cidade de Juazeiro


O prédio era um prédio grande

Tinha uns dois ou três andares

Igual à prefeitura de Campina Grande

Mas num tinha quem entrasse


E nesse meio termos

Fecharam a avenida

E a polícia tome corda, tome corda

para salvar o artista

má deu uma revira-volta

E assim de última hora

Quando achava que era polícia

Veio o momento mais arrepiador

O artista principal chegou

Era o artista que salvava

Que veio salvar o outro artista

Ele veio naquele avião

Que tem uma peneira em cima


E ele num voava não

Ficou parado na prefeitura

Lá de cima ele avistava

Em baixo as viatura

E o povo avistava ele

Pela capota de vrido

Com dois cinturão de bala

E nas mãos uma espingarda

Com um canozão comprido


E os matuto me escutando

Sentado em cima de uns jegue

Aí eu disse o nome do artista

Arnudo Ichuazinegger

Má preste atenção meu irmão

Porque num é desses Ichuazinegger

Que dá no cu de qualquer moleque

Nascido no sertão não


É Ichuazinegger importado

Que num existe na Paraíba

Ou é da Checoslováquia

Ou então é da Bolívia


Aí o motorista mandou

Ichuazinegger dá um sarto

Ele pulo do avião

Quebrou logo o telhado

Depois furou a laje

E caiu no meio da sala

onde o artista tava amarrado


E antes que os bandido se ajeitasse

Ichuazinegger cheio de enfeite

Pegou tudo desprevinido

Cumeno cuscuz com leite


Ichuazinegger pegou a pistola

E se escorou num cantin

Começou a atirar

Num sei quê lá, Num sei quê lá, Num sei quê lá

Pois num é que matou tudim


Aí foi que apareceu bandido

E foi briga de cem metido a metro

Ele deu um tabefe danado

No bandido Mané Tapadi

Que logo soltou um berro

E feito uma jaca mole

caiu no chão de cu trancado


Aí um bandido atrevido

Homilhou o nosso artista

Agrediu-o com uma dedada

Onde as costas faz a virada

Onde ela muda de nome

No olho que num vê nada


O artista ofendido

Na região delicada

Entre a rapidez da dedada

E a velocidade do epa

Se escorou assim numa mesa

E com a fúria de 150 siri

Numa lata de querosene

Apontou a buduada

Acertou mermo na cara

E no serrote dos dente

O que choveu de canino

De molar e de incisivo

Fez chapa pra um mói de gente


Nesse momento o bandido

Correu já ia escapar

O artista com a espingarda

Começou a atirar

Tiro foi mais de setenta

Que a gente no cinema

Teve que se abaixar


Daquelas letrinha que passa

Derrubou um mói minha gente

Era bala de cartucheira

Que chega o telão ficou quente

Das letras sobraram três

Eu digo para vocês

Era um F, um I e um M


segunda-feira, 9 de maio de 2011

Ode à minha mãe

Eu precisava voltar

Só por uma vez tomar o seu café sem reclamar

Sentir o cheiro da sua comida pela casa inteira

E te dizer que ela é a mais perfeita

Compreender o gosto com que fazias tudo pra mim

O amor com que te acordavas cedo

Preparava o meu café, e antes de eu sair

Pra batalha de um dia inteiro

A proteção que eu ganhava

Com o amor do teu beijo

Entender o teu sorriso ao ver minha felicidade

E mais nunca te coibir, tentar te calar,

Ou te boicotar, por todas as minhas conquistas

À vizinhança contar

Agora eu sei, era orgulho

Nunca entendi isso, por nunca ter sido maduro

Por em seus braços ser uma criança

Que alimentava as suas esperanças

De ser um homem de futuro

Não quero jamais frustrar

O entusiasmo de quando vinhas me falar

Que contastes a todos do meu sucesso

Pois na minha pequenez diante do universo

Eu não pude enxergar a satisfação de uma mãe

Em dizer criei meu filho para um caminho são

Eu queria pedir perdão

Pelas vezes em que, preocupado com os problemas da vida,

Deixei de te dar bom dia, de beijar a sua mão

No momento em que pedia a bênção

Correndo, apressado pela insatisfação

De não ser completo para o mundo

Mas, esquecendo de ser completo para a minha mãe

Eu sei que não fui bom filho

Que não te tratei como mãe

E isso é uma frustração sua que você nunca vai manifestar

Pois você prefere me preservar

Isso é natural, um amor incondicional

Que faz a boca silenciar, quando o peito quer gritar

Mãe, te amo e isso basta

Sei que falar isso te conforta

O céu torna a ser azul e o sol entra pela porta

Quantas vezes me dissestes exatamente isso

E eu dizia também te amo só pra me deixares ir embora

Ou quantas vezes nem respondi e a senhora ouviu a porta

Fechando devagarzinho, eu já do lado de fora

Mas fazias questão de gritar novamente: te amo

Eu ficava irritado, as pessoas na rua passando

Me faziam sentir vergonha, mas isso já não importa

Tudo o que eu queria é que você me levasse à escola

E de mãos dadas me beijasse na frente dos amiguinhos

Mas vou te dar um beijo agora

Dizer: te amo, me perdoa, você é a razão da minha história

quinta-feira, 24 de março de 2011

Eu queria copiar todos os arquivos da tua vida e colar na pasta da minha mente; na lixeira jogar todos os momentos tristes que vivenciamos; e às vezes em que cheguei a duvidar do nosso amor, formatar os nossos destinos para que nenhum vírus nos atinja, mas você nunca está online.

sexta-feira, 4 de março de 2011

AS TANTAS PIPAS EM UM CÉU TÃO APERTADO

(As tantas culturas em um mundo tão pequeno)

Uma reflexão do multiculturalismo à luz do filme “O Caçador de Pipas”


O Caçador de Pipas é um filme baseado no romance que tem o mesmo título, escrito pelo afegão Khaled Rosseini que atualmente mora nos EUA – é bom que se diga isso. O livro virou best-seller, com milhões de cópias vendidas pelo mundo inteiro, fora os downloads do livro e filme que são muitos pela internet.

Amir é um menino rico e mimado que veste lacoste, e que tem um fiel escudeiro: Hassan, o menino pobre, filho do empregado e que está sempre à disposição. A amizade dos dois é colocada em questão por um grupo de garotos de etnia inimiga que tentam mostrar a Hassan, que ele é apenas um empregado de Amir e não um amigo, como se relações sociais de castas impossibilitassem a construção de uma amizade verdadeira. Além disso, esses garotos julgam Amir e seu pai como não sendo afegãos de verdade e que não merecem viver entre eles, uma prova cabal de conflito social gerado por preconceito cultural.

Essa amizade é verdadeira, até o ponto em que é ameaçada pela a atitude desses mesmos garotos. Eles tentam levar de Hassan, uma pipa que o garoto havia prometido ao seu companheiro Amir, e diante da resistência do menino, consuma-se o ato do estupro que Amir presencia de longe. Ele foge sem fazer nada, mas é acometido pelos duros tormentos do sentimento de culpa islâmico.

Esse sentimento de culpa vai segui-lo por toda vida. Quando os soviéticos invadem o Afeganistão, na tentativa de impor sua cultura e equalizar as massas no que eles consideram certo, mais uma vez Amir foge, dessa vez para a América, e quem defende com unhas e dentes o patrimônio de Amir é Hassan, que fica na casa do seu pai.

O longa tenta abordar o multiculturalismo e, em alguns pontos, de forma frustrada. Pois, o pai de Amir bebe uísque, anda de Mustang, ouve músicas em inglês e desfruta de outras “regalias” do mundo ocidental. Viver dessa forma no mundo afegão é quase que inaceitável. Mas pode também representar o rendimento à cultura capitalista em protesto ao comunismo russo que devastou cidades como Cabul, e que o filme mostra tão bem.

O escritor que se tornara nos Estados Unidos e a nova vida que construíra não arrancam de Amir o velho sentimento de culpa. Por isso, ele volta a Cabul e vê uma cidade devastada, onde as pessoas são obrigadas a agirem de determinadas maneiras porque o pluriculturalismo, existente no Ocidente que Amir vive, não é aceito por lá.

Amir acaba se auto perdoando já que todos haviam morrido, quando adota o filho de Hassan, tendo sido este queimado em praça pública por defender a casa de Amir. Uma bela atitude. Mas, quantas crianças não existiam em Cabul? Obrigadas a viver com migalhas e a mercê dos desejos soviéticos em terras pátrias? O menino que ele leva para os Estados Unidos sofre, ainda, mais noções preconceituosas por ser de origem afegã, pelo próprio sogro de Amir que é afegão. Ou seja, uma mostra do quanto a cultura pode tornar seres tão iguais como os humanos, em pessoas tão diferentes.