domingo, 17 de setembro de 2023

Nordeste: uma cultura em tela


 

O amigo leitor, ao ler o título deste curto ensaio, provavelmente desenhou imaginariamente um horizonte de expectativas de forma inconsciente sobre o Nordeste em tela.

Involuntariamente, você deve ter sido levado a visualizar um cenário tão rico de expressividade quanto pobre de reducionismo sobre essa região do país enorme demais para caber em um quadro representativo que não ultrapasse as cores da seca, os contornos da ruralidade, os traços do baixo desenvolvimento.

Seja sincero! Que Nordeste apareceu na sua tela imaginária? Tenho a plena certeza que não deva ter sido algo que fuja ao constructo acima descrito ou às praias do imenso litoral, ou ainda sobre as manifestações culturais nossas mais simbólicas.

Veja! A ideia deste trabalho não é desenvolver uma atividade metalinguística, ou seja, usar a língua para discutir sobre outra linguagem: a audiovisual, assim como fez o grande Miguel Arraes em “Lisbela e o Prisioneiro” (2003), quando a protagonista discute o tempo todo no filme sobre o cinema.

Mas precisávamos dessa reflexão inicial para avançar no nosso debate exigindo - de quem lê e de quem escreve – uma desconstrução sobre essa tela de Nordeste.

É que o NE precisou historicamente se encurtar bastante para caber nas telas que o representavam, diminuir-se de tal maneira a reduzir toda a sua grandiosidade a um único ângulo de percepção, uma só lente. O Nordeste, no audiovisual brasileiro, virou este espaço simbólico sobre o qual falamos.

A produção mais recente é a estonteante minissérie Cangaço Novo. As imagens de ação são espetaculares, mas a reprodução das imagens do Nordeste reforça a estética e a historiografia comum do Sertão. 

Não se trata aqui de uma crítica a essa legítima valorização e ratificação de uma imagem substancial da nossa história, do nosso povo, dos nossos costumes. Não! Mas cumpre alargar as lentes para outros nordestes. A Invenção do Nordeste, de Durval Muniz, assim nos ensina.

A grande questão não é a reprodução desta parcela importante da imagem do Nordeste e dos povos nordestinos, mas a forma como é feita, a apropriação da cultura para encaixá-la em narrativas. O cineasta belga de origem francesa radicado no Brasil, Jean-Claude Bernardet, chegou a afirmar que as produções documentais da cultura popular nordestina não são elas próprias produtos de uma cultura popular, uma vez que os grupos reproduzidos nos filmes não participam do processo de construção dos documentários com suas lógicas coletivas de percepção da própria cultura. “Configuram uma forma de desapropriação da cultura popular em favor dos produtores e dos consumidores dos filmes. Mais exatamente: uma desapropriação de imagens e sons tirados da cultura popular”.

Há uma flagrante superficialidade em determinadas abordagens do audiovisual sobre a região que deixam clarividente, tal qual uma exibição digital, essa rotulação, de modo que a lente parece saber o que já vai captar antes mesmo de gravar.

Cremilda Medina denuncia o déficit de abordagem nas narrativas da contemporaneidade e, como exemplo, reclama do não aprofundamento do telejornalismo na cultura chinesa quando da cobertura das Olimpíadas em 2008: “espalham-se informações e assinaturas em que o leitor não encontra a visão abrangente”. Assim poderíamos entender também a angulação do audiovisual brasileiro sobre o Nordeste, esse lugar de seca, religiosidade, mesa farta e a contradição com a fome, coronelismo, gente espalhafatosa, praia, sol, incivilidade... Mas quais circunstâncias estão no arcabouço de tudo isto?

Outro dia desses ouvi de um amigo mineiro que mora atualmente na Paraíba que ele não entendia muito do que assistia ao ver “O Auto da Compadecida” e que, só após passar a morar no Nordeste, reassistiu e sua experiência foi completamente diferente. Em que sentido? Primeiro o de compreender muitos dos comportamentos e de interligá-los com o nosso cotidiano sem parecer uma anomalia. Segundo por entender que aquele era um retrato, mas não um todo. O Auto da Compadecida 2 está para ser lançado e as gravações precisaram ser feitas em estúdio, pois a Taperoá nos anos 1960 já não mais existe. Compreende agora?

“Na teia de significados de um diagnóstico abrangente, não é possível abraçar todos os ângulos, mas, por outro lado, ficar insistindo em um único – em geral a visão economicista dos acontecimentos – leva à redução e não à complexidade” (MEDINA, 2008, p. 82).

Há, no entanto, um movimento endógeno no sentido de abordar com maior profundidade esses nordestes, retirá-los dessa sublimação que promove “uma prisão de sentidos”, parafraseando Antônio Olinto (1954).

Cineastas como Linduarte Noronha, conhecido como o pai do Cinema Novo, e Vladimir Carvalho já fizeram uma enorme abordagem aprofundada desse nordeste sertanejo, com muita propriedade e essência. O que se reclama aqui é a bestialização que se fez em seguida no audiovisual com o nosso cenário.

Mas como profetizava Belchior, “o novo sempre vem”, e alguns novos produtores podem ser colocados nessa prateleira de cineastas nordestinos que reposicionaram a “objetiva” (como geralmente é chamada a lente) para o que poderíamos chamar de “subjetiva”. Tomando por empréstimo as palavras de Fabiana Moraes, na objetividade “[...] está a imensa produção de representações pouco integrais sobre pessoas, grupos e lugares. Nessas lentes opacas e enquadramentos repletos de reduções [...]” (2019, p. 2014).

Esse jogo do objetivo ao subjetivo não é apenas semântico, é muito mais pragmático, trata-se de um redimensionamento sobre pensar o Nordeste na tela, ou nas telas. Da busca por espaço nas telonas do cinema à introdução nas telas da televisão brasileira e à presença nas telinhas das redes, o Nordeste vem se reconfigurando no audiovisual.

A literatura, em um primeiro momento, tratou de dar as bases sobre este campo fértil de exploração visual. Do regionalismo de “A Bagaceira”, do paraibano José Américo de Almeida, ao Torto Arado, de Itamar Vieira, muita coisa mudou por estas terras. As Vidas Secas, de Graciliano Ramos, tornaram-se menos retirantes e passaram a fincar os pés neste torrão.

Voltando a Bernardet, ele é um dos que atacam enfaticamente esse estereótipo no cinema brasileiro do que ele vai chamar de “a estética da miséria”. Para o crítico, a banalização da abordagem naturaliza a miséria e despolitiza esse quadro. O pesquisador exige um posicionamento diferente do audiovisual.

É isso o que têm feito produções como o curta-metragem “O Pato” (2021), de Antônio Galdino, que retrata a violência doméstica em um filme gravado no interior da Paraíba. Não é a estética que é explorada, mas são as causas, os efeitos e as saídas.

É assim que ocorre também no mais recente sucesso do cinema nordestino, Bacurau (2019). A narrativa de não-lugar, de cidade fantasmagórica, de espaço em ruína é questionada, colocada em xeque, confrontada até com atores americanos e, por fim, a cidade se estabelece no mapa, com suas tradições e suas novidades. Bacurau sacudiu as audiências e ganhou o prêmio do júri no Festival de Cannes, feito somente alcançado no Brasil por O Pagador de Promessas (1962), também nordestino.

A riqueza visual permanece extremamente proeminente no Nordeste, mas há outros cenários a serem também explorados. Ou o amigo leitor nunca se indagou sobre porque um produto da teledramaturgia, por exemplo, nunca foi gravado em um centro urbano nordestino, destacando a vida metropolitana? Há tão somente a possibilidade de, se acaso algo for gravado para as bandas de cá, precisar ser necessariamente no semiárido? Recife é um dos centros urbanos mais significativos do país, reúne a herança do Brasil-Colônia com uma arquitetura eclética, povoa as ruas com desenvolvimento desenfreado, mistura o mar com o mangue. Agora eu peço que nos esforcemos para rememorar grandes produções audiovisuais calcadas nesta riqueza visual do Recife (não vale mencionar o carnaval e o Galo da Madrugada).

O movimento Manguebeat, liderado por Chico Science, buscava exatamente, além da denúncia social, constituir a valorização de uma identidade própria recifense, de quem vive “da lama ao caos”. Outro morador do Recife, o paraibano Ariano Suassuna – autor do Auto da Compadecida que citamos –, foi também um fundador de movimento a fim de consolidar a cultura local e elevá-la à dimensão de cultura erudita, clássica, a partir de bases populares. O movimento armorial também se estabeleceu com sua força e sua verve, tanto que se transpôs da literatura, do teatro, da música, para as telas. Prova dessa investida de sucesso é que o filme e o seriado transformaram a cidade de Cabaceiras na roliúde nordestina. E ela detém uma coisa preciosa para o cinema, que é a estabilidade climática, com a menor taxa de ocorrência de chuvas no país e uma superexposição de luz. É realmente um dos melhores lugares para gravar na América Latina, tal qual o céu iluminado de estrelas do Seridó paraibano, este ainda pouco explorado – talvez só mais visibilizado em Boi Neon (2015).

No transcorrer dos anos, tal como o Rio São Francisco que corta o Nordeste e agora banha quase todos os estados, esse rio perene da cultura nordestina foi irrigando outros espaços (num sentido metafórico e também literal). Fazendo um rápido parêntese com a história do rio, observe que a água é um fator simbólico bastante explorado na dimensão visual do Nordeste. Do Velho Chico ao Rio Pajeú, toda uma cultura simbólica se estabelece em torno das águas. No Vale do Pajeú, por exemplo, há uma atmosfera de literatura popular em que os poetas dizem matar a sede. É o espaço do batismo e também da irrigação do imaginário desses poetas da chamada poesia matuta, que é também um outro aspecto reproduzido nas telas. No século passado, os cantadores, emboladores, violeiros, repentistas, cordelistas se viram explorados pelas lentes na sua caracterização peculiar, e ainda hoje permanecem. O pai do chamado “novo cordel”, Manoel Monteiro, fez um apelo para que os escritores nordestinos não precisassem usar chapéu de couro, gibão e outros adereços, típicos de vaqueiro que entra na jurema para pegar boi. Não eram necessários ao ato de escrever, então que se deixasse para os vaqueiros.

Ora, continuemos a discutir sobre essa abordagem do Nordeste no vídeo. Os personagens são cheios de expressividade e isso transborda na tela. Em “A pessoa é para o que nasce”, as irmãs cantoras de Campina Grande, conhecidas como As Ceguinhas, não puderam se enxergar, mas se mostraram para o mundo, de forma tão translúcida quanto a cena em que aparecem nuas na praia de Tambaba (PB). Aqui o documentário diz mais sobre as personagens, do que elas mesmas julgam saber. (BERNARDET, 1985).

Amargamos recentemente a morte do grande roteirista dessa obra primorosa, Maurício Lissovskyi e, um pouco antes, a partida da artista Maroca, uma das três irmãs. Eis a mágica do audiovisual: mesmo com as mortes, a história delas está imortalizada na tela, pois se “A pessoa é para o que nasce”, ela não morre. Contudo, é necessário observar, como aponta Bernardet, que “Um registro nunca pode coincidir com a coisa registrada. Todo registro pressupõe um certo arbitrário cultural”. Mas veja! Neste caso em específico, o diretor Roberto Beliner se envolve e envolve as irmãs na produção de tal forma que a obra é ela mesma um produto coletivo de cultura popular, gestado a partir de “situações sinceras do signo de relação que fluem no documentário, frutos de uma observação participante, apaixonada”, avalia Alexandre Zarate Maciel (2011, p. 426).

Vou me encaminhando para o fim. Como toda obra audiovisual, este texto em tom ensaístico também não se encerra aqui. Tem a finalidade de, feito um trabalho transmídia, permanecer rodando na mente inquieta de quem conseguiu assistir a esta discussão até aqui e se reproduzir através das reflexões, produções e audiências que se farão do, sobre e para o Nordeste.

 

“O olhar vê tons tão sudestes

e o beijo que vós me nordestes

arranha céu da boca paulista”

(Chico César – BERADÊRO, 1995).

 

Referências:

 

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

 

MACIEL, Alexandre Zarate. Conviver, sentir, narrar: personagens documentais e

Jornalísticos. Santa Catarina: Estudos em Jornalismo e Mídia - Vol. 8, No 2, p. 417 – 430, julh/dez. 2011.

 

MORAES, Fabiana. Subjetividade: Ferramenta para um jornalismo mais íntegro e integral. Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 204 – 219, jan./jun. 2019.

 

MEDINA, Cremilda. Déficit de abrangência nas narrativas da contemporaneidade. Matrizes, Ano 2, nº 1, 2008.

 

OLINTO, Antônio. Jornalismo e Literatura. Rio de Janeiro: Selo Edições de Ouro, 1954.