quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Solastalgia na Chapada dos Veadeiros

Eu escrevo este manifesto enquanto a natureza chora raivosa - não do lado de fora da pousada em que estou, mas de dentro de si - pois o dentro ou o fora não possui uma relação com estruturas de alvenaria para determinar o que é ou não casa, ou o que é ou não a referência. As paredes erguidas pelos homens são apenas um sedimento no solo dessa chapada. Nós, excêntricos que somos, costumamos achar que esses imóveis são a centralidade do que pode existir como referência de abrigo. 

Mas e os sapos que cantam à margem da lagoa? São eles desejosos dessas estruturas? Não! A lagoa é o seu lar. E as paquinhas que giram na lâmpada que me ilumina? Essas foram “seduzidas” pelo brilho potente de uma luz que atrai mais do que os vagalumes ou do que a vegetação rasteira que reflete a luz da lua. Essa simples lâmpada de LED mudou o rumo de milhões dessas paquinhas. Como poderia imaginar Thomas Édison? O Iluminismo traz luz e escuridão. 

O que me faz escrever quase com a mesma força com que a água desaba do céu do Cerrado é um sentimento chamado pelo filósofo Glenn Albrecth de solastalgia, uma sensação poderosa, dolorosa, triste de sentir um remorso abissal pelos danos ambientais que impactaram, impactam e vão impactar o meio ambiente no futuro, uma saudade por algo que ainda não se perdeu, de sofrer pela perda de uma casa que deixará muito em breve de existir. As letras pingam forte na tela feito as gotas que crateram o solo. É uma enxurrada de dor e desalento. O som da água se mistura ao toque desse teclado numa sinfonia assíncrona, improvável. É choro fora e dentro! 


Sinto muito enfurecidamente, e não lamentavelmente pois lamentar não transforma nada, por saber que próximas gerações de quilombolas Kalungas, os verdadeiros habitantes deste lugar em que estou, não verão o que eu, homem branco do Nordeste, vi nas terras que lhe são originalmente pertencentes, mas pertencentes num sentido amplo, de pertencimento e não de propriedade. Sinto, vergonhosamente, que novamente uma geração de humanos brancos segue a vilipendiar o espaço que não lhe cabe. Sem ter sequer conhecido os novos Kalungas, me desculpo por saber que ajudei involuntariamente a lhes negar a chance de viver, de existir como Kalungas, como quilombolas. É um manifesto contra mim e contra muitos! 

Assistir às araras-azuis-grandes ou desfrutar do banho gelado das cachoeiras é um prazer que não durará para sempre. Roubei de muitos essa oportunidade. Sinto novamente o peso da exploração sobre esses povos se repetir, agora com o eufemismo de turismo. 


O nosso guia é um Kalunga. Admilson Francisco viveu por muitos anos nas terras onde ele se reconhece como ser. Relata ter vivido sem ver carro passar por anos na região. “Era uma raridade”. Hoje é uma constante. O inevitável “progresso” chegou, e a que custas? Na Cachoeira Ave Maria são mais de 100 metros de queda d’água. Pergunto se o nome se dá pelo formato que remete ao véu da santa, no que ele me responde que, na verdade, a cachoeira recebia os corpos dos homens negros escravizados que eram usados por donos de terra na região para abrir estradas. “Depois do serviço, que eles usavam os escravos, jogavam eles aí”, narra. A santa havia de protegê-los no céu depois de caírem no inferno.

É difícil seguir. As águas que hoje me banham de prazer, lavaram corpos e sangue. A trilha que corta a vegetação abre crateras dentro de mim. Sinto uma invasão. Sinto por invadir. Os trajetos começaram pequenos e foram se alargando, conta Admilson. “Ser humano é assim, vai explorando, desmatando e daqui a pouco onde passava um passam cem”, diz na sua sabedoria. E é por essa observação dele que julgo dizer que em breve não haverá mais tudo isso, só estradas. Na ditadura empresarial-militar, um certo ditador afirmou que governar é construir estradas. São essas estradas que retiram de comunidades como dos Kalunga a chance de existirem como são. Admilson Francisco até fala inconscientemente que normas ambientais engessam o turismo na região: “Coisa do Ibama”. Mas reconhece que vivia melhor na roça, como ente desse ecossistema. “A vida na roça era melhor. Tive que morar na cidade, trabalhar como pedreiro. Nem se compara”, lamenta. Sem saber, mas sentindo, ele sofre aqui de solastalgia. 

Escrevo nesse 8 de janeiro de 2023, bem próximo ao Distrito Federal, na Chapada dos Veadeiros. Enquanto um dos maiores golpes à democracia acontece em Brasília. Choro junto à natureza pelo futuro dos Kalungas, pelo seu futuro, pelo nosso futuro.