sábado, 11 de agosto de 2012

Dia-a-dia


Estava estressado em demasia por pensar que não havia pautado ainda nada para a edição do dia. Enquanto o ônibus transitava pela cidade me levando ao trabalho com o pesar de uma viagem para o inferno e o motor rugia rancoroso com a força de um leão que eu imaginava me devorar enquanto eu não pensasse em alguma matéria interessante, mentes invisíveis iam e viam apressadas à minha frente. Observá-las, por que não? Ah, certamente descobriria um personagem valioso para uma pobre reportagem. Mas eu não conseguiria enxergar com sensibilidade a riqueza das pessoas. Tudo o que vejo me faz perguntar: “Será que isso rende?” Será que a história dessas pessoas rende? Mas, o que é render? E será que a minha história está rendendo? Que coisa! Que negócio sem lógica. Rapidamente os meus cinco minutos diários exatamente cronometrados de reflexão idealista do valer ou não a pena as minhas atitudes se diluem esparsos numa nuvem vermelha e capitalista ao lembrar-me da redação do jornal. Inquieto-me. Xingo-me. Xingo a todos. Não, o problema é comigo. Eu sei disso, ou será com os outros? Enfim, enquanto valorizo e julgo ser correto o que faço e como gasto meu tempo, imerso num mundo todo azul que esconde um fundo preto de hipocrisia não consigo enxergar mais nada. Meus sentidos mais sublimes foram lacrados para sempre e jogados no porão da ignorância. Cessaram a minha sensatez. A claridade do dia penetra a minha íris, mas a beleza das coisas não invade o meu coração. Mas está tudo perfeito, a não ser pelas constantes paradas do ônibus que me fazem sentir ódio até das senhorias que vão descer no próximo ponto.  Nem a doce lembrança da minha namorada me faz sentir melhor. Enfim, paro os olhos inquietos e apáticos em uma cena. Inquietos pela velocidade que o dia-a-dia exige, mas apáticos por não enxergaram o universo além do próprio mundo, o surreal dentro do comum. A cena não me chama a atenção, estou apenas descansado o olhar calejado, mas pouco a pouco vou me prendendo naquilo. Tudo em volta passa a não mais existir, observo um casal que minha pré-leitura insiste em afirmar que são casados. Mas, por quê? Só pela idade? Exatamente por isso, não consigo pensar diferente. Observo-os atentamente, nem me dou conta da minha intromissão na vida alheia. É que passamos a viver imersos em bolhas fechadas que nos asseguram e nos protegem das outras pessoas, olhar nos olhos de alguém é uma invasão de privacidade. Mas meu senso de educação e de representação é censurado por um dos poucos momentos instintivos de jornalista investigativo. O casal tem entre quarenta e cinquenta anos, lembram meus pais. A mulher está sentada abraçando o seu afeto, e este fala o tempo todo sorrindo, gesticula muito e toca a todo instante a sua mulher. É uma cena clássica de enamorados recém-apaixonados que conversam asneiras. Mas meu ouvido de poeta sem tuberculose consegue identificar que falam de coisas sérias, bem sérias como a mensalidade da escola do filho, mas onde está a preocupação? O meu modo de agir diante de tais assuntos quer me forçar a entender que não ouvi aquilo, porém é isso mesmo. Que inveja dessa tranquilidade para conversar sobre os problemas do dia-a-dia. Sou agora admirador dos dois. Ela está vestida com roupas baratas, mas bem produzida, o cabelo pintado com a tinta da venda da esquina. Ele usa uma camisa social de mangas curtas mal ensacada em uma calça jeans cheia de bordados. A conga de jogar bola, sem meia, calça os seus pés. Às 09h15 marcadas no meu MontBlanc são apontadas no relógio digital dele comprado na Feira da Prata. Quando escrever isto provavelmente estarei sorrindo ao lembrar-se dessas figuras, provas de que o amor é de graça. Enfim, estou contagiado por esse espírito humanista. Queria que todos no mundo fossem daquele jeito, quero minha relação assim com a minha esposa. Vejo que o homem traz consigo algo que tenta esconder entre o assento e a janela do ônibus. Curvo-me abruptamente de forma gradual para enxergar o que é, a mulher percebe e se incomoda e alerta o marido, mas consigo ver que ele guarda três pães doces em uma sacolinha.  A vergonha que me falta ao observar os seus atos é a vergonha que recobre de tristeza o homem pela minha descoberta, pois atestei a sua pobreza. Constrangimento! Sinto vergonha pelo homem, apenas três pãezinhos em uma sacola. Ameaço desviar o olhar com o sentimento de que sou asqueroso por destruir a felicidade de alguém, a mulher sussurra no ouvido dele e tenta contornar a situação embaraçosa.  Se pudesse pediria desculpas e se fosse ele perguntaria “tá olhando o quê?”. Meus olhos querem observá-lo de novo, o cérebro não comanda minha visão, é o coração que levanta a minha vista e dou de supetão com os olhos do homem que acaba de analisar a sacola como se a contar o conteúdo. Ele aparenta estar olhando para o horizonte atrás de mim, mas a simplicidade puxa seus olhos para os meus e fixamente parados, os dois sentem que é o momento de se abrir. Simultaneamente sorrimos. Como se não bastasse, ele ainda me oferece um dos pães. Não aceitar seria uma denúncia de ar de superioridade, para ele seria uma desfeita. Ainda bem que aceitei, o pão doce adoçou todo o meu dia. 

Que bom que vocês podem escolher, Por que eu vou à força pra Pasárgada


Vou-me à força pra Pasárgada
Por discordar do meu rei
Não tenho a cama que quero
Na cela que ficarei
Vou-me à força pra Pasárgada

Vou-me à força pra Pasárgada
Por não ser filho de doutor,
Não tenho a cela desejada
E por contestar meu senhor
Faço parte dessa massa
Que vai à força pra Pasárgada

E como farei ginástica
Dentro da minha cela
Exercitando a memória
Exaltando a nossa glória
Da vida que é novela

E quando lá em Pasárgada
Eu morrer aflito em vão
Meus versos não dizem nada
Comparados a um turbilhão
De mentes mecanizadas
Que vão à FORCA de Pasárgada.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Primeiro amor

Quando as estrelas reinam no céu

a lua do nosso amor brilha mais que o sol em meu peito

fecho a porta do quarto e me deito

mas os olhos não fecham, a boca traqueja

e o coração acelera

A tua lembrança bate e rebate

com o som de um martelo judicial nas mãos da felicidade

ela sentencia o nosso amor e nos dá a liberdade

a nossa condicional foi assinada

por todos os promotores da verdade

Não sou juiz, tampouco sábio para fazer julgamento

mas absolvo todos os seus erros

pois tudo em você é perfeito

eu te quero do seu jeito

de cara limpa e com defeitos

A saudade não me incomoda

ela simplesmente reforça o que eu estou sentindo

é a certeza de que estivemos juntos

que o dobro do meu tudo

está guardado contigo

Se os olhos são o espelho da alma

Os seus são a porta do céu

Sublimes como crianças

Obscuros como véus

Quando eu não te conhecia, aliás,

como eu sofria, a noite me assombrava

o silêncio me calava, nem as paredes me ouviam

o telefone não tocava com a sua voz macia

perguntando sobre o meu dia

Ninguém ia me consolar

e escutar meus anseios

olhar além dos olhos, do coração e da alma

E mesmo sem dizer nada

contar o maior segredo

Esse que é o segredo da vida

que todos almejam encontrar

que o cientista pesquisa, que nem mesmo Freud explica

mas que só os enamorados

conseguem vivenciar