quarta-feira, 13 de maio de 2009

O homem que queria perder a visão

Chegou ao hospital público por volta das seis da manhã, já fazia seis meses que havia marcado a consulta e esperado aflitamente por este dia. Nas três horas de espera que passou para ser atendido, viu cenas muito comuns em nosso sistema de saúde, a pobre deficiente sentada ao chão por falta de cadeira de rodas, implorava por um copo de água não tendo resposta em sua súplica, e o velhinho que levara dois tiros? Pedira apenas para que o arrumassem um pano, queria limpar o sangue que escorria sobre o rosto para que a filha não o visse daquela forma, pois esta já havia pedido-lhe que parasse de consumir drogas. Pedido que lhe fora negado. Finalmente é chamado para ser atendido por um oftalmologista. Ao entrar na sala de consulta o médico o indaga:
- Qual o seu problema?
- Sabe doutor, não é um problema, ao contrário, é a solução deste. Diz o paciente.
- Pois bem, então diga que problema nós iremos resolver.
- Eu quero doar minhas córneas.
- Suas córneas?
- Sim, minhas córneas.
- Por qual motivo?
- Cansei de ver todas as coisas ruins da vida, todas as lástimas e toda a maldade do homem, não quero testemunhar todas as atrocidades cometidas pelo ser humano.
- Não é tão simples assim, quem em sua sã consciência e no domínio de suas plenas faculdades mentais, como o senhor aparenta estar, desejaria doar os próprios olhos?
- Eu. Justamente por está em pleno domínio de minhas faculdades mentais, incomodado com as coisas erradas que vejo e por ter o senso crítico minimamente apurado, não quero ser apenas mais um a ter os olhos vendados quando eles estão abertos.
- O senhor está se contradizendo, se alega dizer que tem o senso crítico apurado para as causas sociais, certamente não deveria querer perder os olhos.
- Dizem doutor, que o pior o cego é o que não quer ver. Então, se é para “tapar o sol com a peneira”, prefiro ter uma razão para me ausentar de qualquer culpa já que não verei mais essas injustiças.
- Eu respeito a sua atitude apesar de não entendê-la.
- E nem nunca entenderá, pois apesar de ser um homem estudado, o senhor aparenta ser rico e ter a alma sucumbida pela modernidade.
- Ei, alto lá! Estamos falando da sua crise existencial, não queira questionar o meu tipo de vida.
- Tá vendo doutor? Nessa civilização ninguém tem paciência com as outras pessoas, mas vamos deixar de mais conversa e vamos ao que interessa. O senhor vai me operar ou não?
- Antes que você me faça perder mais tempo, vamos logo à cirurgia.
Pela primeira vez, um médico de hospital público decidia resolver logo o caso de seu paciente. Terminada a operação, o homem agora já sem os seus olhos fez um último pedido ao médico:
- Doutor, diga a pessoa que receber minhas córneas que eu lhe dei os óculos da alienação.
O médico pensa “Que tolice” e diz:
- Certo, eu lhe passarei a sua mensagem.
- Doutor, dizem que quem é cego tem os outros sentidos mais aguçados, tratarei de apurar minha audição, meu tato, meu olfato e meu paladar. Mas este último não quero deixá-lo sofrer, então quando eu não aguentar mais o gosto amargo da vida, venho para que o senhor me tire a língua.

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